Um silencioso acontecimento na competição do IndieLisboa
The Family ou as conquistas da vida normal de uma família chinesa. Ou de como a normalidade é também esquecimento. Realizado por Liu Shumin, é um silencioso acontecimento na competição do Indie.
Foram três anos de produção e rodagem, trabalhando com actores não profissionais. O resultado ultrapassa as quatro horas e meia de duração. Começar assim, como se fosse um espectáculo de proezas, é em tudo o oposto do que é um filme chamado The Family — a estreia na realização de Liu Shumin, director de fotografia chinês que vive na Austrália, e que participa na competição internacional do IndieLisboa com esta primeira longa-metragem (Jia, no original).
A longa-duração (pode abrir-se aqui um parêntesis) começa a ser um festival dentro dos festivais. Que, continuando a evitar as pedras que atrapalham a engrenagem dos filmes de uma duração convencional mais a ver se te avias, perceberam o potencial do excepcional. Que uma montanha aparentemente inultrapassável — filmes de cinco, seis, oito horas... — podem constituir marketing não desprezível para um nicho de entusiastas. Ou seja, já é um ritual de prestígio alternativo. Antes de fechar o parêntesis, não é excessivo recordar o que aconteceu em Cannes o ano passado, quando as seis horas de As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes, contribuíram para o afastar da competição principal na Croisette, mas tiveram o efeito contrário uns metros mais abaixo — ou acima, se se quiser — na linha de praia: festas a cada projecção na sala da Quinzena dos Realizadores.
Feche-se o parêntesis porque o feito que interessa em The Family é este: é o melhor filme na competição do IndieLisboa, a que voltaremos nas páginas deste jornal. Acabado o tom ribombante, siga-se em surdina.
É a história de uma família chinesa, três gerações: avós, filhos, netos. Uma família “normal”, que persegue a sua integração na normalidade — ao contrário dos esquecidos dos filmes de Wang Bing, para quem o realizador só pode lutar por uma história alternativa. O casal idoso (Liu Lijie e Deng Shoufang) viaja pela China. Para ver dois dos filhos que trabalham e vivem com as suas famílias em diferentes cidades, mas na verdade para procurarem deles ajuda financeira para mobilarem a nova casa, onde a terceira filha, divorciada e com um filho que com eles vive, vai habitar. É um filme todo ele sobre negociações e abdicações, construído à volta de refeições, onde todos se juntam, mas onde, de forma inelutável, todos já se afastaram. É um filme sobre a memória. Sobre como a conquista da vida normal, aceder a ela, se faz à custa do esquecimento (quer dizer, então, que, tanto aqui como no cinema de Wang Bing, a História é a grande anulada).
The Family é baseado em memórias e acontecimentos da vida do realizador. Os actores têm eles próprios um património de histórias comuns. Viagem a Tóquio, de Ozu, é presença que todos sinalizaremos. Mas não é a redução a um gesto cinéfilo, pelo contrário, isso amplia o filme para um território de universalidade. É um reconhecimento que nos conforta e torna melancólicos, porque é a história do filme de Ozu, é a história do filme de Shumin Liu e é a história de Shumin Liu e dos seus actores, e é a minha, a tua, a nossa...
E agora vejam como fazer isto deve ter sido uma proeza.
Em que momento de A Família decidiu trabalhar com actores não profissionais? Como os escolheu e, quando o fez, que mudanças teve de adequar?
Na verdade eu tinha pensado em filmar com não profissionais na escrita do argumento, com excepção do papel do pai. Tinha mesmo um actor na cabeça para a personagem. Tinha gostado de um filme que vi com ele e para ser sincero estava com receio de que todo o cast fosse constituído só por amadores. Na vida diária, quando vemos uma pessoa, sentimos muita coisa pela forma como ela se parece, como fala e como se comporta. As experiências de vida de uma pessoa moldam-na. Não queria actores profissionais para os outros papéis porque penso que a vida de um actor profissional fá-lo ser e parecer diferente ao lado de uma pessoa normal. E não gosto da forma como ensinam os actores nas escolas: torna as performances muito teatrais.
Quando acabei o argumento, comecei à procura de locais de rodagem. Escolhi as três cidades onde o casal idoso e os três filhos vivem e comecei à procura do cast nessas cidades. Procurei em empresas, instituições, escolas, hospitais, tudo a que tive acesso. Os membros da família do meu filme foram escolhidos de entre essas cidades diferentes, a partir de milhares de pessoas.
Fazer o cast foi a coisa mais importante no filme, mais do que a história. Só se as pessoas se ligarem aos actores conseguem aguentar o filme e segui-lo. E o meu é um filme mais sobre personagens do que sobre contar uma história. Por isso a personalidade do actor era factor determinante quando fiz as escolhas. Não lhes pedi que “actuassem” nas audições. Na maior parte do tempo, apenas me limitei a falar com eles, a senti-los, para perceber se eram sinceros e abertos. E para perceber se gostava deles. E foi durante essas conversas que pude perceber que eles tinham experiências semelhantes às das personagens. Na maior parte das decisões, a intuição teve papel importante.
Acredito que a maior parte das pessoas pode interpretar se as fizermos sentir confortáveis e confiantes. Algumas relaxam mais facilmente, eram essas as pessoas que eu procurava.
Depois de ter escolhido todos os membros da família, juntei-os para que se familiarizassem uns com os outros e com a câmara, etc. Depois fi-los ensaiar, não a partir de cenas do filme mas de cenas dos filmes de que gosto. Durante o ensaio, percebi que o único actor profissional era o que não se misturava bem com os outros, na verdade era mesmo o mais fraco. Tentei melhorar as coisas, mas os seus hábitos de interpretação eram demasiado fortes para serem mudados. Tive de desistir dele.
Teve de mudar o argumento para ir ao encontro das histórias pessoais dos actores?
A maior parte das cenas no filme contam acontecimentos do quotidiano que não eram estranhos ao cast. Não lhes deixei ler o argumento, e a maior parte deles não sabia grande coisa da história. No entanto, pedi-lhes que memorizassem aspectos relacionados com a história da família. Muitas vezes disse-lhes coisas sobre a cena momentos antes da filmagem e deixei-os interpretar por conta deles, sem tempo para se prepararem. Depois de cada take, fazia alguns ajustamentos. Algumas vezes esqueciam-se de partes do diálogo, mas se a take fosse natural e comovente e se o diálogo em falta não fosse assim tão essencial, eu mantinha a take. Foram apenas estas as mudanças de argumento.
E houve momentos em que improvisaram e enriqueceram o argumento. Por exemplo, na cidade de Fuzhou, quando o velho casal está com Pingping, a netinha, e atravessam a ponte para peões sobre a estrada, Pingping falava sobre um colega rapaz. Ela improvisou a maior parte do diálogo. E aquela parte em Xangai, em que o velho casal e o filho e a nora estão a jogar póquer no parque: disse-lhes apenas que se lembrassem de pontos essenciais da cena, mas que improvisassem tudo o resto.
A parte difícil era que alguns eram muito bons na primeira take e se enervavam quando se faziam mais takes. Tive de encontrar um ponto de equilíbrio. Houve momentos em que precisei de dúzias de takes para conseguir o que queria, outras vezes foi previsto apenas uma, mesmo numa cena muito difícil. Ou seja, boas ou más, houve sempre surpresas.
Até onde vai a semelhança entre a história das personagens e a das pessoas que as interpretam? Por exemplo: a situação da filha que vive com os pais velhos e as outras que se autonomizaram e vivem em cidades separadas?
Este filme é na sua maior parte baseado em histórias da minha vida, à semelhança das da minha geração. Há situações que foram adaptadas de histórias de amigos meus, de coisas que ouvi e li. Essa situação que menciona é igual à da minha família.
Porque não fez um documentário?
Quis fazer um filme baseado na minha experiência de vida pessoal. Não conseguiria isso com um documentário
A duração final de The Family teve algo a ver com a especificidade do cast com que trabalhou?
Tinha pensado num filme de duração convencional. Durante a rodagem deixei os actores trabalharem ao seu próprio ritmo, desde que as interpretações parecessem autênticas e tocantes. As takes tornaram-se mais longas do que eu esperava, mas gostei tanto que as deixei ficar assim na montagem.
Os membros desta família são olhados pela câmara em situações de grande proximidade, dentro de casa, nos quartos, mas ao mesmo tempo são olhados à distância, como que perdidos no cenário urbano. Há uma amplitude enorme, como mudanças de temperatura. Foi um realizador “diferente” num caso e noutro?
Obrigado por esta pergunta... Como deve imaginar, em interiores, eu não podia ter planos de conjunto como podia em exteriores. Na verdade, na rodagem confiei basicamente na minha intuição em termos de enquadramento e iluminação. Acredito sempre que o inconsciente é mais rigoroso e poderoso do que a razão ou qualquer teoria. Na maior parte das vezes, a racionalidade ou a teoria é mais um limite do que um guia. Adoro planos à distância em exteriores, tocam-me de maneira que não consigo explicar...
As personagens mal se tocam. Há uma cena em que o velho casal chega a casa de uma das filhas e ela recebe-os como se os tivesse visto no dia anterior. Detalhes como este foram “trabalhados” ou é a gestualidade própria daquelas pessoas que foi incorporada no filme?
Nas famílias chinesas, os seus membros raramente mostram a sua intimidade. As gerações mais jovens, com a influência da cultura europeia, talvez sejam um pouco diferentes e não se incomodem tanto em mostrar os afectos em público, mas ainda assim não se sentem confortáveis em abraçar-se ou beijarem-se em frente a outros membros da família. Na cena que refere, Deng, a mãe, abraça a neta mas não a filha, que é uma adulta. É essa a maneira chinesa — ou mesmo oriental.
Esta é afinal uma história sobre a memória. E sobre o esquecimento. Um realizador como Wang Bing, filma personagens que foram esquecidas pela História. Podemos dizer que as suas personagens pertencem à narrativa oficial, à História. Mas num ponto ambos coincidem, Wang Bing e você: é que o pacto com a normalidade é também um pacto com o esquecimento; participar significa esquecer, às vezes, o essencial.
Sim, o filme é sobre a minha memória, que naturalmente está ligada a uma História. Nunca vi um filme de Wang Bing, mas concordo com o que diz sobre a “normalidade”. Ao ficar mais velho, entendo mais da chamada “vida normal”, interesso-me cada vez mais pelas pessoas ditas normais. Por isso quis registar a vida delas com o meu filme. É a minha primeira tentativa. Quero fazer mais.
Muitas cenas giram à volta da comida, cozinhar, comer. Que são momentos em que um grupo se junta. Mas são as cenas mais solitárias do filme, porque se nota que aquelas pessoas divergiram silenciosamente.
É perspicaz a notar isso. Quando comem, todos os membros da família estão juntos. É aí que se vê como reagem uns face aos outros, é aí que compreendemos mais as relações que os unem.
Viagem a Tóquio, de Ozu (1953), está presente no seu filme. O que lhe dá uma qualidade arquetípica. É uma família chinesa, é uma família, é a sua família também, é a minha família...
Adoro Viagem a Tóquio porque vejo ali a minha família. As culturas chinesa e japonesa são semelhantes em várias coisas e têm a mesma origem. The Family é na sua maior parte um filme sobre a minha família, e a maior parte das famílias chinesas dessa geração são muito parecidas também. Foi essa a razão por que fiz este filme. É um filme para os meus pais e para a minha geração. Se calhar todas as famílias são iguais de alguma maneira. Ficaria muito feliz se visse a sua família ali, como eu vejo a minha na Viagem a Tóquio de Ozu.