A culpa é sempre do capitalismo
Por muito que lhe custe, Daniel Oliveira não usou palavras muito distintas das que Marine Le Pen entendeu adequadas para caracterizar a questão em apreço. A culpa é sempre do capitalismo.
1. “Não é o caminho que é difícil: é o difícil que é caminho.” Esta bela frase de Simone Weil bem poderia e deveria inspirar todos quantos intervêm no espaço público das nossas democracias. Infelizmente, o que se constata diariamente desde o discurso político até aos mais remotos cantos da blogosfera é precisamente o contrário: o triunfo do que é menos exigente, seja do ponto de vista da razão, seja do ponto de vista da ética. Não é por isso surpreendente a supremacia que os populismos de toda a ordem têm vindo a alcançar. Quando a inteligência crítica deserta e a rectidão moral dá lugar à inescrupulosa exaltação de um angelismo melífluo, criam-se as condições favoráveis ao sucesso de uma retórica assente na exploração de emoções primárias. Esse risco acompanha o percurso histórico do Homem e não é alheio às características fundamentais da democracia. Não foi decerto por acaso que os primeiros pensadores deste modelo de regime o associaram com a prática da demagogia. Desde o seu alvor que a relação entre a democracia e a demagogia se colocou de uma forma assaz curiosa: constituirá esta última uma degradação patológica da primeira ou, pelo contrário, ser-lhe-á inelutavelmente consubstancial? Vários séculos de reflexão política não permitiram uma dilucidação completa do problema.
No tempo que vivemos, sob este ponto de vista, o populismo assume sobretudo as características de uma crítica radical às instituições democrático-liberais, seja no domínio político, seja no plano da organização económica. Nessa perspectiva, não há grande diferença entre os comunicados da Frente Nacional de Marine Le Pen e as profissões de fé da extrema-esquerda encartada. Uns dizem que a culpa é da globalização, outros afirmam que a responsabilidade é do capitalismo universal. Coincidem num ponto: a opção por uma amálgama indiscriminadora que anula criminosamente a complexidade da realidade política contemporânea.
Atentemos na forma como uma questão séria como é a do escândalo associado aos Panama Papers tem vindo a ser tratada. Para a extrema-direita europeia, o caso revela os malefícios do cosmopolitismo liberal na sua expressão económica. Para a extrema-esquerda, constitui a última demonstração da absoluta falência moral das economias de mercado. Nesse aspecto não há realmente grandes diferenças entre as posições de um fanático reaccionário e de um devotado revolucionário. Os tontinhos de serviço do anticapitalismo primário que prosperam nas páginas dos nossos jornais de referência não revelam uma imaginação substancialmente diferente daquela que habitualmente se manifesta nos herdeiros da tradição maurrasiana da extrema-direita europeia. Por muito que lhe custe, Daniel Oliveira não usou palavras muito distintas das que Marine Le Pen entendeu adequadas para caracterizar a questão em apreço. A culpa é sempre do capitalismo. É óbvio que são diferentes as mundivisões que os orientam e os objectivos que os norteiam. A circunstância de em nada divergirem os diagnósticos não deve porém passar despercebida.
Sejamos sérios: nenhum dos pensadores ou teóricos do capitalismo receitou ou defendeu a selvática ausência de regras de enquadramento do funcionamento dos mercados. Pelo contrário ? podendo até ser acusados de excessivo e angelical idealismo ? preconizaram sempre a necessidade da existência de regras como condição imprescindível à prevalência do princípio da livre concorrência. Se nalguma coisa falharam foi justamente nesse excesso de optimismo que os levou a desvalorizar a dimensão política e a desguarnecer a salvaguarda de uma forte intervenção da instância estatal. Na realidade, se o capitalismo conseguiu sobreviver aos seus próprios defeitos, tal decorreu em grande parte da capacidade democrática de assegurar a sua adequada regulação pública. O sucesso da social-democracia reside precisamente aí, na capacidade de regular as pulsões próprias de um modelo capitalista, integrando-as numa perspectiva mais geral de uma sociedade eminentemente democrática. Quando o socialismo pretendeu ir mais longe do que isso revelou-se uma tragédia. Só que isso não é pouco, e é o que talvez falte nos tempos que correm.
Voltemos aos Panama Papers. Não é verdade, apesar de todas as dificuldades, que a União Europeia esteja paralisada no combate aos chamados paraísos fiscais. Pelo contrário: nos últimos anos, quer no âmbito da OCDE, quer no âmbito da própria UE, têm vindo a ser dados passos muito importantes no sentido de combater estes verdadeiros buracos negros que ofendem os princípios constitutivos das nossas sociedades democrático-liberais e que contribuem para o sucesso dos radicalismos cujo único horizonte de referência são as práticas tirânicas que sempre identificaram os regimes de natureza não democrática. Não será por acaso que até à data ? com a excepção imediatamente resolvida da Islândia ? não detectámos a presença de qualquer dirigente político do espaço democrático ocidental na lista dos eventuais prevaricadores. Está lá Putin, estão lá dirigentes chineses, estão lá autocratas de todo o estilo e natureza, não estão líderes europeus. E não estão por uma razão simples: pela qualidade das instituições que estruturam os regimes democrático-liberais. O resto é conversa fiada de espíritos ou muito retorcidos ou pouco abonados. Uns deploram-se, outros lamentam-se.
2. Tay, a "jovem" criada a partir de uma experiência de inteligência artificial e destinada a interagir no mundo das redes sociais, teve uma vida breve. Morreu por overdose de estupidez e de boçalidade. Cometeu um único crime: reproduziu acriticamente o que se passa nessa estranha dimensão onde se manifesta o pior da humanidade. Ainda será possível algum optimismo antropológico depois de ler o que aí se escreve? Talvez seja, se acreditarmos na tese de que há uma enorme lucidez no culto de um certo silêncio. Afinal de contas, a verdadeira maioria silenciosa será essa: a dos milhões e milhões de seres humanos não dominados pelo narcisismo ególatra que caracteriza a maior parte das pessoas que gostam de aparecer nesse fascinante mundo das redes sociais.