Vera potente e alucinadamente lúcida

O Limpo e o Sujo é uma peça que transborda de movimento e que desmonta com humor as virtudes da higienização.

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Vera Mantero tirou o melhor partido da repetição, enquanto técnica coreográfica elementar Tuna

A nova obra de Vera Mantero teve estreia absoluta no âmbito do ciclo “as 3 ecologias” denominado segundo um ensaio de Félix Guattari (1989). Nesse texto, referencial para o ciclo que decorre em Lisboa, o filósofo francês reclama a reavaliação dos índices de qualidade de vida do sistema capitalista (como o PIB e o poder económico), e argumenta a construção de um futuro ambientalmente sustentável, colectivamente negociado e individualmente trabalhado.

O conhecimento deste contexto não é fundamental para pressentir a qualidade vigorosa da obra a que se lançou Mantero, mas ele demonstra a sua capacidade notável de pôr a teoria em prática: os princípios pós-estruturalistas e os ideais de uma sociedade descentralizada mas actuante, inerentes à “Ecosofia” de Guattari, são organizadores que aparecem nitidamente em cena.

O Limpo e o Sujo é uma peça das acções, que transborda de movimentos, e que desmonta com humor as virtudes da higienização face às contradições e promiscuidade da vida humana, pessoal ou mundial. Afinal, quanto suja a limpeza? E quanto vale uma sujeira?

Num ritmado prelúdio duas mulheres e um homem defrontam o público desfiando, com habilidosa precisão e energia, uma série de gestos de limpeza de si - limpeza física e limpeza espiritual. Esfregadelas do peito para fora, para cima, para o meio e para baixo, com a palma da mão ou com a ponta dos dedos; afastar impurezas da vista; fungar para expelir a porcaria pelo nariz; limpar os ouvidos; desemaranhar os pensamentos e reorganizar a cabeça; despir, enfim, o desnecessário e sentir a satisfação desse esvaziamento libertador.

Vera Mantero, Elizabete Francisca e Volmir Cordeiro introduzem assim os materiais essenciais de uma riquíssima coreografia, que será sempre conduzida pelos gestos físicos e pelo seu significado subjectivo, à qual os bailarinos dão corpo e cara com uma personalidade e empenho muito justos e inspiradores.

O palco despido com bastante luz e alguma tralha técnica à vista, assim como uma banda sonora melódica mas percussionista, proporcionam uma atmosfera algo confusa e ruidosa onde se instala, ciclicamente, um caos imaterial e convergente em clímaxes que fraccionam a peça. Os intérpretes reforçam as transições de ciclo com alguns uníssonos e agregações mas, neste ambiente, os três seres percorrem sobretudo caminhos próprios e sobrepostos – sublinhando o compromisso pessoal - e no seu curso reconhecemos o vocabulário inventado e transmitido de uns para outros em comunidade.

Mantero tirou o melhor partido da repetição, enquanto técnica coreográfica elementar, conferindo ao efémero corporal um poder de impressão e visibilidade epistemologicamente importantes. Vemos que é possível criar um novo articulado comum e duradouro; porque é tão belo e tão estranho, tão ágil e tão duro, tão óbvio e tão intangível, a sua complexidade é evidente; e percebemos que funciona.

Rebuscar na história da artista também não é essencial para defender a pertinência desta peça. Porém, ao compará-la com alguns antecedentes - como Talvez ela pudesse dançar primeiro e pensar depois (1991) ou Poesia e Selvajaria (1998) - confirmamos a coerência de um percurso de risco marcado pela dialéctica entre pesquisa artística e pesquisa política. Vera Mantero pensou, pensou, pensou... e agora presenteou-nos com uma nova dança colectiva de fôlego onde ela própria dançou tão bem: alucinadamente lúcida, como sempre.

 

 

 

 

 

 

 

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