Há muitas queixas de má prática médica mas poucas chegam a julgamento
Conselho de peritos que emite pareceres técnicos em casos graves recebe quatro processos por semana e está a demorar a responder.
A perna de uma mulher foi amputada porque os médicos cortaram uma artéria em vez de uma veia durante uma cirurgia às varizes. Um homem operado por causa de uma sinusite acabou por ficar cego. Um médico esqueceu-se de uma pinça no abdómen do doente durante uma cirurgia. São exemplos de casos que chegaram a tribunal, mas há muitas queixas de alegada má prática médica que não deram origem a acusação, muitas por não terem fundamento, outras porque obter e fazer prova neste tipo de situações é muito difícil.
Em Portugal, é impossível aceder a números rigorosos sobre denúncias daquilo que comummente se designa como negligência médica. Mas há alguns dados que permitem ter uma ideia aproximada da evolução deste fenómeno. O mais expressivo é o número de queixas em casos que resultaram em morte ou incapacidades graves que chegam ao Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF), órgão ao qual os magistrados podem recorrer desde 2001 para pedir pareceres técnico-científicos em processos complexos.
Em 2014 (últimos dados disponíveis) atingiu-se o valor mais elevado de sempre. Entraram nesse ano no conselho 213 processos, a esmagadora maioria dos quais relativos a situações de eventual negligência médica. Os números não diferem muito dos de anos anteriores, sobretudo desde 2008, quando se observou um pico (ver infografia), mas em 2014 há uma diferença: nesse ano, pela primeira vez, o total de pareceres emitidos pelo conselho foi muito inferior ao de processos entrados (125).
Mas há inúmeros casos que escapam a este crivo. Há pessoas que enviam denúncias não só para as autoridades judiciais, mas também para as ordens que representam os profissionais e ainda para organismos como a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS). As queixas podem resultar em sanções penais, civis, disciplinares.
Nos processos-crime, o que se consegue saber, com rigor, é o número de inquéritos da que será ainda a única secção do Ministério Público especializada na investigação deste tipo de crimes. Com 103 inquéritos pendentes, a 6.ª Secção do DIAP (Departamento de Investigação e Acção Penal) de Lisboa recebeu, ao longo do ano passado, 65 novos casos, mais uma dezena do que em 2014, adiantou ao PÚBLICO a procuradora Emília Serrão.
Sublinhando que a quantidade de inquéritos tem variado de ano para ano, a magistrada explica que, desde 2011, os números se cifram anualmente “entre 67 e 65”, incluindo as participações enviadas pela IGAS. Certo é que a maior parte acaba por ser arquivada. A percentagem de acusações “ronda os 4%”, estima a magistrada. Razões? Este tipo de crime é “muito difícil de investigar” por causa da dificuldade de “obtenção de prova”, além de que “não é fácil que o médico deponha contra outro médico e há sempre uma opinião divergente”, explica.
Mas não só: o facto de se verificar, nos últimos dois a três anos, “grandes atrasos” na resposta aos pedidos de parecer do Conselho Médico-Legal do INMLCF também terá alguma influência. “Embora se reconheça que [os peritos] vêm fazendo um grande esforço e que trabalham para todo o país, aguarda-se mais de um ano”, frisa a magistrada.
Acentuando que os “pareceres são normalmente emitidos em menos de um ano”, apesar de por vezes haver “pareceres que demoram mais tempo”, a assessoria do INMLCF justifica a diminuição abrupta verificada em 2014 na elaboração destas perícias com o facto de se ter procedido “à recomposição” do Conselho Médico-Legal e ter sido mudado o Conselho Directivo do instituto. “Há processos com três ou mais volumes de informação clínica, ultrapassando por vezes as mil páginas, a qual é minuciosamente analisada”, acrescenta.
De resto, há uma explicação suplementar: por vezes, depois de chegarem a acordo nas negociações quanto a pedidos de indemnização, “os acusadores perdem o interesse na apresentação da queixa”, indica Emília Serrão.
Sendo poucas, as acusações deduzidas têm, contudo, vingado e, exceptuando o caso do Avastin (em que seis doentes ficaram total ou parcialmente cegos no Hospital de Santa Maria, em 2009), os tribunais da Relação têm confirmado as decisões, destaca a procuradora.
Dois mundos à parte
Juristas especializados neste tipo de casos têm vindo a defender que o sistema instituído em Portugal não beneficia nem os doentes nem os médicos, que ficam a aguardar pela conclusão de processos que se arrastam anos a fio nos tribunais. Habitualmente, nos hospitais públicos, cabe ao paciente provar que houve culpa com dolo, o que é complexo. “É muito difícil provar que houve culpa”, sustenta André Dias Pereira, professor auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que destaca o exemplo de França, onde existem sistemas de conciliação que integram juízes e peritos médicos e os doentes são rapidamente ressarcidos.
A vice-presidente da Associação Portuguesa do Direito à Saúde, Filomena Girão, realça que é fundamental harmonizar as regras que regulam o sector público e privado e caminhar para “uma objectivação da culpa”, notando que o que a maior parte dos queixosos pretende não são “indemnizações milionárias”.
Defendendo também uma harmonização da legislação, André Dias Pereira continua sem entender as discrepâncias entre o sistema público e privado em Portugal. Nos hospitais públicos, cabe ao lesado provar a culpa, ao contrário do que sucede no privado. Também o prazo de prescrição do direito de indemnização, se houver responsabilidade contratual, é de 20 anos no privado e de apenas três no público. De igual forma, as regras de acesso ao processo clínico por parte do doente ou dos familiares após a morte variam. No público, em teoria o acesso é directo, enquanto no privado deve ser intermediado por outro profissional de saúde. São dois mundos à parte no mesmo país.
Oito anos até à sentença
Também o tempo que os processos demoram nos tribunais se tem revelado um problema. Um estudo recente revelou que a justiça demora cerca de oito anos, em média, até chegar a uma sentença. Mas há quem espere muito mais: em Dezembro, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou o Estado português ao pagamento de uma indemnização de 39 mil euros, por danos morais, à viúva de um homem que morreu com uma septicemia (infecção generalizada), após uma operação para extracção de pólipos nasais, há quase duas décadas.
Depois de ter recorrido a todas as instâncias possíveis em Portugal por acreditar que a morte do marido, em 1998, se devera a sucessivos actos de negligência médica, sem que os tribunais e a Ordem dos Médicos lhe dessem razão, Isabel Fernandes invocou o artigo 2.º (direito à vida) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e pôs em causa a demora dos processos judiciais que interpôs. O tribunal europeu deu-lhe razão.
À Ordem dos Médicos (OM) chegam todos os anos muitas queixas. Só em 2015, a OM abriu 649 processos, decidiu 592 e arquivou 561. Menos do que em 2014, ano em que mudaram os conselhos disciplinares e “houve um esforço para dar sequência a processos que vinham do passado”, explica o bastonário José Manuel Silva. No ano passado, a OM condenou 31 médicos, metade com penas de advertência, 14 de censura e dois médicos foram suspensos por um ano. Mas a OM não faz triagem nem especifica os motivos que deram origem aos processos.
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