Médica faz exame a paciente privada em hospital público. Mulher morre
Hospital de Santa Maria desconhece caso e diz ser comum clínicos aposentados continuarem a trabalhar em regime de voluntariado.
É uma história com contornos rebuscados: a família de uma mulher de 61 anos, Ana Santos, acaba de apresentar queixa por alegada negligência no Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) e na Ordem dos Médicos contra uma médica aposentada, mas que continua a trabalhar como voluntária no Hospital de Santa Maria (Lisboa). A família acredita que Ana morreu em Novembro passado devido a uma reacção adversa a um fármaco usado num exame, substância que seria contra-indicada tendo em conta os seus problemas respiratórios.
Médica da família no seu consultório particular há longos anos, considerada de confiança e vista até como amiga, L., que é cardiologista, vê-se agora no papel de acusada, depois de no início de Outubro passado ter começado por fazer várias análises e um electrocardiograma a Ana, que se queixava de cansaço e muita falta de ar, na sequência de uma pneumonia que deixou sequelas. Esta é a versão da história contada pela filha na queixa judicial a que o PÚBLICO teve acesso.
Aposentada por limite de idade no final de Abril de 2015 (nos hospitais públicos, os médicos não podem trabalhar após os 70 anos), L. manteve a actividade no seu consultório privado e continuou a exercer no Santa Maria como voluntária.
Grande fumadora (três maços de tabaco por dia) e obesa, Ana apresentava vários factores de risco e, no final de Outubro, voltou a consultar L., que lhe prescreveu “provas respiratórias”, ficando marcado “encontro” para 2 de Novembro na medicina nuclear do Hospital de Santa Maria. A filha diz ignorar o que aconteceu desde que a mãe chegou ao início dessa manhã ao hospital e as 13h18, hora do “registo de entrada no Serviço de Urgência”, após paragem cardiorrespiratória. Ana permaneceu em coma nos cuidados intensivos, acabando por morrer a 21 de Novembro.
Dolo e abandono
Antes da sua entrada na urgência, não há qualquer tipo de informação. Não há registo informático de consulta nem de qualquer exame; sabe-se apenas que “sofreu uma paragem cardiorrespiratória provocada por uma “reacção adversa a administração de adenosina” durante uma “cintigrafia de perfusão do miocárdio” (administração intravenosa de um radiofármaco para estudar a distribuição do fluxo sanguíneo), refere a autora da queixa.
Alega a filha que a adenosina é “um fármaco contra-indicado em doentes com queixas de falta de ar”, justamente o principal problema que Ana revelava nas últimas semanas de vida.
A questão que se coloca agora é a de saber se “estamos perante um erro médico e/ou negligência médica, que custou a vida de uma pessoa”, sublinha. Por isso, defende, é preciso averiguar se a médica “terá agido com negligência”, considerando que os danos causados pelo fármaco “não podem ser desligados” da morte que aconteceu 19 dias depois.
A filha de Ana queixa-se ainda de “dolo e abandono”, alegando que a médica, após o acidente, “prosseguiu a sua vida normal e dirigiu-se ao seu consultório particular, onde esteve a trabalhar até às 20h e só depois de terminar as consultas entrou em contacto com uma colega de trabalho” da doente. “Não teve o cuidado de telefonar ou contactar pessoalmente a filha, nem o avô, que conhecia muito bem”, lamenta. Este morreu precisamente um mês depois de ter perdido a filha única.
Acidentes que acontecem
A cardiologista garante que a acusação não tem qualquer fundamento. Ana não estava com problemas respiratórios, queixava-se sim de uma dor no peito, contou a médica ao PÚBLICO. Por precisar de “saber se havia ou não isquemia [diminuição da passagem do sangue pelas artérias]”, pediu uma prova de esforço, mas, como Ana pesava mais de 100 quilogramas, não podia realizar a prova numa passadeira. Optou então pela realização de uma cintigrafia e, no decurso do exame, a doente “fez uma paragem cardiorrespiratória.
“Foi a primeira vez que me aconteceu”, assegura a médica, que lembra que todos os exames comportam riscos. “São acidentes que acontecem, são raros”, sustenta. “Como é possível alegar que há negligência se ela nunca ficou abandonada, estava viva? Não tenho qualquer problema, tudo foi feito correctamente”, acentua ainda, questionando o facto de a família não ter pedido uma autópsia. Outra familiar de Ana explica que entenderam não ser necessário fazer autópsia porque a reacção adversa à adenosina aparece como uma das causas de morte na certidão de óbito.
Quanto ao facto de ter realizado a cintigrafia no Santa Maria quando se tratava de uma doente que atendia no seu consultório privado, L. afirma que foi a família que lhe pediu para realizar o exame no hospital, porque este era muito caro. “Foi um favor que fiz”, lamenta. Uma tese que a família de Ana contesta, asseverando que desconhecia a decisão de fazer aquele exame. A médica explica também que esperou algum tempo para contactar a família porque é necessário preparar as pessoas para uma notícia destas.
O conselho de administração do Centro Hospitalar de Lisboa Central (CHLN, a que pertence o Santa Maria) adianta não ter notícia de qualquer queixa sobre L., mas pediu à direcção clínica que abrisse um “processo de averiguações expedito” para poder colaborar com quem solicite informações. Se existir matéria legal, assegura “a habitual rigorosa e disponível colaboração por parte do CHLN” para ser “apurada a verdade dos factos” com celeridade.
O CHLN confirma ainda a médica se aposentou por limite de idade em 30 Abril de 2015 (os trabalhadores apenas podem trabalhar até aos 70 anos no SNS) e foi autorizada a exercer funções, em regime de voluntariado, “uma prática recorrente não só deste como de vários hospitais".