Banco de Portugal desaconselhou resolução do Banif 15 dias antes de a aplicar
A 4 de Dezembro, o Banco de Portugal propôs ao Governo que capitalizasse o Banif com dinheiro público. Oito dias depois dizia que a resolução era a única saída. Governo tentou contornar interdição de Bruxelas com proposta de integração do Banif na Caixa Geral de Depósitos.
No dia 4 de Dezembro de 2015, duas semanas antes de o Banif ter fechado as portas, e apenas oito dias depois da posse de Mário Centeno, chegou uma carta preocupante ao Ministério das Finanças. Carlos Costa, o governador do Banco de Portugal explicava, em 12 páginas, o impasse. A situação descrita era a de uma "crise grave". "Não se antevê capacidade de o grupo Banif apresentar medidas que permitam retornar a níveis de solvabilidade acima do exigido", explicava o regulador, "nem capacidade de os seus actuais accionistas privados efectuarem o necessário reforço de fundos próprios".
A situação era de "reconhecida urgência". Porém, o Banco de Portugal, que integra o Sistema Europeu de Bancos Centrais, manifestava uma preferência clara: "As circunstâncias específicas da situação em que o Banif e o sistema financeiro nacional se encontram desaconselham a adopção para este banco de uma solução idêntica à utilizada para o BES." Ou seja, uma resolução, seguida da entrada em funcionamento de um "banco de transição" (no caso do BES, o Novo Banco).
Mais dinheiro no Banif
Por isso, continuava Carlos Costa, a melhor opção era outra: uma nova injecção de capitais públicos no Banif. "O Banco de Portugal entende que a solução que melhor permite lidar com a situação de crise financeira grave que o Banif enfrenta e que melhor garante a estabilidade financeira é a realização de uma operação de capitalização obrigatória com recurso ao investimento público."
Uma decisão dessas tem um enquadramento específico: "A decisão cabe ao membro do Governo responsável pela área das Finanças, sob proposta do Banco de Portugal, depois da aprovação da Comissão Europeia", explica o próprio site do regulador.
Existiam três formas de recapitalizar a instituição financeira: aquisição de acções próprias detidas pelo Banif; aumento do capital social via emissão de acções especiais; e aquisição de outros instrumentos que sejam elegíveis para os fundos próprios. E, de acordo com as novas regras em vigor, esta medida implicava também que accionistas e alguns credores pagassem parte da factura.
Costa dava um prazo curto a Centeno. Queria uma resposta até dia 9 de Dezembro, dois dias úteis depois. O ministro reagiu mal. Aliás, a mesma sugestão já tinha sido feita pelo Governador a Maria Luís Albuquerque, em Novembro. E a resposta tinha sido um "não" peremptório.
O "chumbo" de Bruxelas
Desta vez, com o actual Governo, não chegou a haver um "não". O Governo sabia que a Comissão alegaria que qualquer recapitalização com dinheiros públicos seria ilegal, uma vez que a viabilidade do Banif estava em causa. Mas mesmo sabendo que, à luz da directiva BRRD (Bank Recovery and Resolution Directive), a injecção de capitais públicos proposta pelo Banco de Portugal "não podia ser feita", nas palavras de um membro do Governo, houve uma tentativa de contornar o problema. Foi apresentada à Comissão uma proposta de integrar o Banif na Caixa, capitalizado porque, considerava o Governo, não fazia sentido manter dois bancos públicos. Também isso foi negado pela DGCOM.
A recusa final chegou ao Banco de Portugal três dias antes da resolução: “Em 17 de Dezembro de 2015, o ministro das Finanças deu também conhecimento ao Banco de Portugal da oposição manifestada pela Comissão Europeia à realização de uma operação de recapitalização obrigatória com recurso a investimento público.”
De nada valeram as tentativas do actual Governo de explicar em Bruxelas que estava há menos de um mês a lidar com o problema. A resposta foi dura: "Nós estamos com isto há dois anos..."
Mas nessa altura, quando a tal "oposição" de Bruxelas chegou, já Carlos Costa pensava outra coisa. A 12 de Dezembro, um sábado, exactamente uma semana e um dia depois de ter "desaconselhado" a Centeno a resolução, o Governador garantia ao mesmo ministro, e à Comissária da Concorrência, Margrethe Vestager, que “não vê alternativa que não aplicar uma medida de resolução” ao Banif.
E se esta oscilação surpreende, há outro dado interessante: Na carta enviada a 4 de Dezembro a Mário Centeno, consultada pelo PÚBLICO e que faz parte das várias centenas de missivas trocadas entre as autoridades portuguesas e europeias entre 2012 e o final de 2015, Carlos Costa refere que, com este modelo, as autoridades europeias deveriam obrigar o Estado a vender a sua posição em “três meses”. A solução final de resolução acabou por obrigar à venda em contra-relógio do banco onde o Estado era o accionista maioritário desde o início de 2013.
Contas agravadas
A carta de Carlos Costa chega a incluir também uma estimativa financeira: a recapitalização do Banif exigiria um montante entre 1606 e 2118 milhões de euros, e o Governador garantia ao ministro, nessa altura, que seria "expectável que o Estado recupere" um valor "entre 624 e 734 milhões de euros".
Os quatro cenários desenhados pelo Banco de Portugal
Poucos dias depois, a factura imediata acabou por chegar aos 2463,2 milhões, e resta saber o que se recupera dos activos que passaram para o veículo especial Oitante e onde estão mais 746 milhões. De receita, o que se sabe é que o Estado recebeu 150 milhões do Santander.
A correspondência oficial sobre este assunto levanta algumas interrogações sobre o papel dos Governos, do Banco de Portugal, da Comissão Europeia e do BCE. A Comissão recusou a proposta do Banco de Portugal. E já tinha explicado porquê, em Novembro: “Como todos sabem, a DGCom continua a ter sérias dúvidas acerca de viabilidade do Banif”, escrevia o número dois da Direcção-Geral de Concorrência Europeia (DGCom), Gert Jan Koopman, numa carta à ex-secretária de Estado das Finanças Isabel Castelo Branco e ao vice-governador do Banco de Portugal José Ramalho, em 12 de Novembro.
Nessa altura, em que o executivo liderado por Passos Coelho fora empossado mas não conseguira passar o seu Programa de Governo no Parlamento, chegou a estar marcada uma reunião "ao mais alto nível" em Bruxelas para debater o Banif. Gert Koopman considerava nessa carta que o adiamento da reunião suscitava “sérias preocupações sobre o calendário para algum tipo de ajuda estatal” ao banco. Sabe-se também que Maria Luís Albuquerque era contra ajudas estatais adicionais.
Ou seja, o assunto esteve em cima da mesa. Mas em Dezembro, quando Carlos Costa o propôs a Mário Centeno, já era, provavelmente, demasiado tarde, até porque coincidia com o "ultimato" dado ao Governo para solucionar a questão, definitivamente, até final do ano.
Do lado do BCE, a questão fundamental, como ressalta das cartas de Carlos Costa, era evitar que os outros bancos sofressem com a situação do Banif. "A solução a encontrar para o Banif não deverá contribuir para o agravamento das elevadas contingências que pesam actualmente sobre o sistema financeiro nacional, sob pena de não se salvaguardar a sua estabilidade", escreve Costa, que defendia assim o envolvimento mínimo do Fundo de Resolução (suportado pelo sistema financeiro, e que já tem o peso dos impactos do Novo Banco). No final, o Fundo de Resolução acabou por entrar com 489 milhões de euros (emprestados pelo Estado) do total de 2255 milhões injectados.