O sonho de Abril, escada acima, escada abaixo
A Constituição faz 40 anos. Fomos para a rua, para um conjunto de prédios que já foi a Cooperativa de Habitação Económica Sonho de Abril. Quisemos ver onde e como está a Lei Fundamental na vida das pessoas, por detrás dos estores, ora corridos, ora levantados, das janelas que dão para a avenida.
Ermelinda Varela, 62 anos, tem uns olhos castanhos-escuros tão meigos que nem quando fala de tristezas perdem a doçura. Não se percebe como faz aquilo. É o segundo dia em que nos recebe em casa. O Kiko, ainda cachorro, corre trapalhão pela cozinha. Desta vez, Ermelinda Varela, lenço na cabeça, conta-nos uma mágoa: não sabe ler. Na cidade da Praia, Cabo Verde, de onde veio há 40 anos, tantos quantos os que faz a Constituição da República Portuguesa, não a deixaram ir à escola.
Para as meninas, aprender a ler só servia para escreverem cartas a namorados, ideias da avó, das “gentes antigas”. Chorou logo aí em pequenina e voltou a chorar muitas vezes, já depois da meninice, pela mesma razão. A Constituição diz que “todos têm direito à educação e à cultura”, mas agora, com a idade, Ermelinda Varela já não pensa aprender, ou voltar a aprender, porque ela tentou uma vez. Tem a certeza, seria outra pessoa: “Sem ninguém me dizer, sinto isso. Se soubesse ler, estava uma grande mulher, não estava como estou.”
Ermelinda Varela vive na antiga Cooperativa de Habitação Económica Sonho de Abril, na Avenida Mouzinho de Albuquerque, em Lisboa, não muito longe da estação de comboios de Santa Apolónia. Hoje já não é cooperativa nem no papel, e muito pouco no espírito. Embora alguns vizinhos garantam que se dão bem com toda a gente, o que salta à vista são uns rápidos “bom dia” e “boa tarde” nas entradas dos prédios: 12 blocos, sete andares, direito, esquerdo. Lá perto, há um parque infantil, mas nos dias em que por lá andámos raramente vimos crianças a brincar.
O conjunto imponente de prédios, de um amarelo deslavado, ainda tem inscrito numa parede lateral Sonho de Abril. Na fachada que dá para a avenida não há varandas, só janelas, estores brancos erguidos, estores brancos fechados. Na parte de trás, há varandas e corredores interiores que ligam os blocos. Vê-se roupa estendida a colorir o cenário, duas hortas num espaço exterior comum. Os corredores funcionam como varandas – num deles, de manhã, uma senhora segura na mão uma muleta, anda pelo menos durante meia hora para trás e para a frente a fazer exercício.
Fábio Viegas, 27 anos, técnico de informática, vive na cooperativa com os pais e o irmão. Lá vence a timidez e conta-nos que trabalha há três anos numa empresa onde recebe o ordenado mínimo. Não o diz em tom queixoso, pelo contrário, gosta do que faz. Percorreu o caminho de tantos outros jovens em Portugal: recibos verdes, estágio profissional, contratos a prazo. Tem esperança de vir a ter um vínculo sólido, de receber mais. Talvez nessa altura saia de casa dos pais.
Não tem estudos superiores. O pai tem pena. Fez um curso tecnológico, depois esteve um ano dedicado a Matemática A, reprovou no exame. Se tivesse passado, teria concorrido a Engenharia Informática. Mas não sente falta de não ter estudado mais.
Após esse exame, começou logo a trabalhar como motorista de uma gráfica, durou dois anos. A empresa faliu. Seguiu-se um vazio, dois anos sem novidades do Centro de Emprego. Foi ele quem conseguiu o trabalho que tem agora.
“Dão poucas oportunidades. Ou porque não temos experiência, ou porque somos muito novos”, diz. Tem amigos que partiram para Inglaterra, trabalham em hotéis, restaurantes. Mas emigrar, para já, não está nos planos de Fábio Viegas.
Há outro Fábio na cooperativa, chama-se Fábio Reis e também optou por não seguir estudos superiores, ficou pelo 11.º, na Escola Secundária Artística António Arroio. Fábio Reis queria ganhar o seu dinheiro, fazer o que gosta. Tem 31 anos, é carpinteiro e marceneiro, casado, três filhos – dois gémeos de dois anos e meio e um de ano e meio.
Vive com a mulher, 28 anos, operadora de supermercado na secção de compras online, 12.º ano. Moram num T2. Estão lá há oito anos, a prestação é paga ao banco: já foi de 250 euros; agora não chega a 200. “Para estar em Lisboa, não consigo melhor em lado nenhum”, admite. Os pais dormem num quarto, os três pequenos no outro. Sabe que um dia a casa há-de ser pequena para a família toda, mas para já a vida está organizada assim. Para Fábio Reis, é um problema de cada vez.
Recebe-nos na sua carpintaria, uma casa de paredes azuis esverdeadas e portas brancas, numa pequena ruela de Lisboa. A fazer de porta há uma placa de madeira que arrastamos e voltamos a colocar no sítio para entrar e para sair do edifício. Lá dentro, diferentes placas de madeiras amontoam-se encostadas à parede, o pó agarra-se à roupa, o som das máquinas abafa as conversas. Fábio Reis faz muitas tarefas diferentes, mas os estudos artísticos permitiram-lhe ter outro olhar sobre os objectos e os detalhes. Também desenha móveis, criações suas, são as suas peças de arte.
Para fugirmos ao barulho das máquinas, subimos até ao pequeno escritório. Fábio Reis agora é empresário, tem o seu negócio. Arriscou. Mas antes disso, trabalhou sempre ali com o pai, desde miúdo, mesmo nas férias. E acumulou com outros trabalhos.
Tanto ele como a mulher tiram, cada um, uma média de 650 euros por mês. “Tem de chegar”, diz. Uma vez por mês fazem uma saída, uma ida ao cinema, por exemplo. Mas não programam férias, só vão de vez em quando à casa que a avó tem em Sines. “Nunca agarrei em mil euros para ir à Madeira ou a Itália. A essas coisas não tenho acesso”, explica. Em 2011, casou-se nos casamentos de Santo António. A mulher inscreveu-os, ele perguntou: “É tudo de borla?”. “Foi a única vez que fui à Madeira e não paguei nada. Hotel de cinco estrelas”, conta divertido.
Um quarto e trabalho
Para cuidarem dos meninos, contam com o apoio dos avós – para ficarem com eles ou para irem buscá-los à creche. Conseguiram uma perto de casa, através da junta de freguesia. Pagam perto de 100 euros, pelos três filhos: podem estar lá das 8h às 16h30. Não vão sempre, às vezes ficam com uma avó. Quando vão, o casal lá se orienta com os horários. O pai leva-os de manhã, a mãe vai buscá-los – como entra às cinco da manhã no supermercado, sai cedo.
Nunca tiveram receio de ter três filhos quando se fala tanto de crise e desemprego? “Nem pensei, queríamos muito e se a gente pensar muito não consegue ter nada”, resume o pai. Além disso, quando sai do trabalho cansado ou aborrecido, chega a casa, leva um abraço dos três e passa tudo: “Fico feliz.”
“Já tive fases em que consegui ganhar muito mais e se vir que me está a faltar alguma coisa, vou arranjar outro trabalho paralelo.” Lembra-se de, estavam os filhos quase a nascerem, ter passado por uma má fase de trabalho: “Cheguei a andar à sucata, a apanhar ferro, quase nos caixotes”, conta. O espírito de iniciativa não o impede, porém, de considerar que em Portugal “é preciso trabalhar muito para ganhar alguma coisa”.
Os meninos nasceram todos na maternidade Alfredo da Costa, e têm sido saudáveis. Ainda assim, o pai já pôde comparar duas experiências: uma vez foi ao sistema de saúde privado, a mulher tinha um seguro que o permitia, mas prefere o público – elogia a médica de família, no centro de saúde, de quem sente “mais carinho e atenção”, e o Hospital da Estefânia, para alguma urgência.
Se Fábio Reis não vê, para já, um problema na dimensão da casa, porque os filhos ainda são bebés, Clara Fonseca, 49, vê. Está de esfregona na mão, bata cor-de-rosa a limpar as escadas num dos blocos. Diz que não encontra, pelo menos na sua família e plenamente, os direitos à habitação e ao trabalho. Os que estão plasmados na Constituição da República Portuguesa. Artigo 58.º 1: “Todos têm direito ao trabalho.” Ou o 65.º 1: “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.”
Clara Fonseca vive num pequeno apartamento – não na antiga cooperativa – que só tem um quarto, onde dorme com o marido. Os filhos dormem na sala. Negociou nesse prédio pagar a luz das escadas, dos elevadores, tratar da limpeza, entre outras condições, que a libertam da renda.
Mas o que ela queria mesmo, e ainda não conseguiu, era que a autarquia lhe arranjasse uma casa maior, pagaria a renda de acordo com os rendimentos (o marido é assentador de móveis de cozinha, recebe cerca de 700 euros, ela oscila entre os 300 e os 500).
Clara Fonseca tem dois filhos, estudaram até ao 12.º ano: um de 29, a trabalhar como aprendiz de electricista; outro, de 22, com problemas renais “bem graves”, que faz hemodiálise e que vai saltando de trabalho em trabalho. A mãe queria que tivesse um quarto só para ele.
E que tivesse trabalho certo. “Ele bem quer trabalhar, bem quer fazer-se à vida, mas é muito difícil.” Conta que o filho já omitiu a doença em entrevistas profissionais, não falou dos tratamentos, de como se sentia abatido nos dias em que os fazia. Garante ainda que foi à Segurança Social expor a questão, mas, diz, propuseram-lhe uma reforma para o filho tão baixa que tanto ela, como ele, preferem os trabalhos que ainda vai tendo. “Mal ou bem, ele vai arranjando.”
Clara Fonseca vai contando a sua história enquanto limpa o chão, uma frase enquanto passa a esfregona pela tijoleira, um olhar parado quando a torce e lhe retira o excesso de água, que cai no balde. Depois volta a tirar a esfregona do balde, volta a rodá-la pelo chão e volta às palavras. A narrativa vai acompanhando o movimento do trabalho que faz, só os fins são diferentes. Quando acaba de nos contar que continua sem conseguir o quarto e o trabalho certo para o filho, Clara Fonseca já deixou o chão de tijoleira a brilhar.
O fantasma do desemprego jovem preocupa outros pais. João Balhau, reformado de 62 anos, tem uma filha de 33 desempregada. Alfredo Oliveira, reformado de 67 anos, também se lembra da angústia de ter visto o filho sem trabalho durante cerca de três anos. Acaba de passear o caniche Max, no passeio da avenida, já está a anoitecer quando nos diz: “O Estado não ajuda nada a arranjar emprego”. Subimos as escadas, entramos dentro do prédio, a luz vai-se apagando à medida que conversamos. Alfredo Oliveira continua, mesmo às escuras, a criticar o processo por que passou o filho enquanto esteve inscrito no Centro de Emprego. É preciso carregar no interruptor da luz antes de ela se voltar a apagar. E a conversa vai continuando assim, luz acesa, luz apagada. “Também é verdade que não se pode arranjar emprego para toda a gente”, diz. Mas “hoje”, lamenta, “é uma sorte”.
As expressões mais contagiantes deixa-as para falar do 25 de Abril, “foi uma alegria muito grande”; do 1.º de Maio, “a maior manifestação” que conheceu na vida, “gente alegre por todo o lado”: “Depois tudo se foi perdendo.” O quê? O que se perdeu? Para Alfredo Oliveira, Portugal perdeu emprego e ganhou mais corrupção.
Também na antiga cooperativa a vida chegou a ser diferente. Alfredo Oliveira lembra-se, por exemplo, do bar, onde se faziam festas de Carnaval: “Tudo acabou.” Carlos Viegas, reformado de 52 anos, também fala nessas festas, mas diz que eram no Natal, para os miúdos. E que no 25 de Abril hasteavam uma bandeira. Inês Bernardo, 55 anos, tem as mesmas memórias, a de hastearem a bandeira da cooperativa. “Agora não põem, ou raramente.”
Inês Bernardo está reformada, teve um acidente de carro em 1992 que a impossibilitou de continuar a fazer o que fazia: era ajudante de cozinha. Vive com o marido na antiga cooperativa há 29 anos, a casa já é deles. O marido trabalha, os filhos, de 33 e 26 anos, têm o 9.º e 10.º anos. Todos electricistas.
Reformas baixas
Ela e o marido têm a 4.ª classe, Inês Bernardo recebe uma pensão de invalidez que ronda os 200 euros. “Isso é que acho mal.” E justifica: “Trabalhei 30 e tal anos, comecei a trabalhar para aí com 14 anos. Acho que as reformas deviam ser um bocadinho mais bem pagas.”
Ouvimos a mesma queixa no Grupo Desportivo Os Jovens, que fica perto do Sonho de Abril. Fernando Jorge está lá a beber um café, a chávena a tremelicar nas mãos. Homem de poucas falas, repete o lamento de Inês Bernardo. Tem 79 anos, era empregado do comércio, recebe 500 euros de reforma. “É muito pequena”, reconhece. Vive na antiga cooperativa com a irmã que tem uma pensão de cerca de 200 euros. E que tem problemas de saúde. “É bexiga, é estômago, é dor nas costas, é tudo”, enumera Fernando Jorge. Enquanto se afasta, ainda diz: “A reforma que temos mal chega para os medicamentos.” Vai para outra sala jogar cartas com amigos. Já não lhe apetece falar mais sobre as reformas ou sobre a Constituição. A Constituição que diz que “as pessoas idosas têm direito à segurança económica”.
Histórias de outros tempos têm o casal Arménio e Isabel Silva, ambos de 59 anos e aposentados. Trabalhavam nas Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento, que fecharam, mas ainda se lembram de quando tinham acesso, no trabalho, a consultas com regularidade, a consultório médico de estomatologia, a apoio para quem queria estudar, a creche, primeiro para os filhos das funcionárias, depois também para os filhos dos funcionários. “Era uma entidade estatal, mas tínhamos um apoio extraordinário para os filhos”, diz Arménio Silva. “A partir de determinada altura acabou tudo”, constata.
“As regalias sociais que tínhamos na altura foram praticamente todas perdidas”, continua. Enquanto fala, vai mexendo nas chaves de casa, está sentado na mesa da sala, onde está pendurada junto à janela uma gaiola com um canário que, ora preenche os silêncios, ora se sobrepõe à conversa com o seu canto.
Arménio Silva lembra-se de ganhar 1143 escudos quando entrou para as Oficinas, em 1973. Aos 18, passavam a receber 2900. A maioridade de Arménio Silva coincidiu, porém, com a altura do 25 de Abril e, por isso, conta, não só recebeu mais pela idade, como ainda teve direito a um aumento de dois mil escudos: “Passei de 1143, que era o meu vencimento, para 4900 escudos, assim de um momento para o outro, foi uma coisa, uma evolução de tal modo positiva que a gente nem acreditava muito naquilo que nos estava a acontecer. Como é que estava a ganhar mil e poucos escudos por mês e de um momento para o outro passo a ganhar quase 5 mil escudos.”
Assim de repente, parece-lhe que, tanto na empresa, como no país, os direitos começaram a encolher há cerca de duas décadas. Arménio e Isabel Silva recebem, cada um, à volta de 860 euros de reforma. Já conseguiram pagar a casa, mas ainda trabalhavam quando iam para as feiras aos fins-de-semana vender artesanato feito em pele por eles, para juntarem mais dinheiro.
Em 40 anos o país mudou. Embora na casa de Artur e Henriqueta Santos, ambos com 80 anos, pareça que são eles a criar o seu próprio tempo e não o contrário. Ele foi contínuo, telefonista, operador heliográfico, recebe 800 euros de reforma. Ela era modista, recebe 270. Pagam 171 euros de renda. Henriqueta Santos está a fazer o almoço, a descascar batatas, cebolas, o sol entra pela janela, ela debruça-se franzina, mas ágil, sobre o balde e sobre a banca. Não têm filhos, fartam-se de passear, já os tínhamos encontrado na paragem de autocarro num outro dia e já nos tinham avisado que nem sempre estão por casa. Vão muitas vezes para as termas de São Pedro do Sul, no dia anterior a esta conversa tinham ido ao baile na Casa do Alentejo. Gostam de dançar. Um detalhe: no dia em que sai esta reportagem, Henriqueta Santos já tem 81 anos, fez a 1 de Abril. A data fá-los rir.
Quem também está sempre irrequieto e sorridente é Carlos Viegas, 52 anos. É o pai de Fábio, do técnico de informática que também treina jovens no Operário Futebol Clube de Lisboa, que fica muito perto da antiga cooperativa. Pai e filho estão lá muitas vezes, ao final da tarde e à noite. No clube, Carlos Viegas faz tudo o que é preciso. Por exemplo: trata da roupa, 40 máquinas por semana. Na lavandaria, os cestos vermelhos com os equipamentos lavados amontoam-se.
Carlos Viegas reformou-se novo, há 13 anos. Teve um acidente – caiu, foi operado a um joelho – e aproveitou uma oportunidade com boas condições para sair das Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento. Mas não sabe estar parado, continua a trabalhar em obras, em quintas, no que for preciso. Nas calças de ganga e nas camisolas que usa vêem-se salpicos de tinta. À porta de casa, umas galochas. Ao lado, e ainda na parte comum do prédio, há uma pequena mesa com estatuetas, tralhas encostadas à parede, sacos, bacias, caixotes de cartão.
A porta de casa abre-se: mais tralhas. Flores de plástico, chapéus-de-chuva, roupa, molduras com fotografias, uma caixa de madeira com vidro feita pelo próprio e pendurada na parede. Dentro dela, dezenas de miniaturas de perfumes. Carlos Viegas pega num dos gatos ao colo – o outro está na cama, chamam-se Kiko e Fofinha. Enquanto brinca com o bicho, ainda mostra os azulejos numa das paredes. Também foi ele quem os pôs ali. Não sabe estar parado, não sabe, nem quer. Gosta de trabalhar, sábados, domingos, de manhã, de noite.
Lá fora, José Borges, 64 anos, passeia de fato de treino o cão Kiko – tem o mesmo nome do gato de Carlos Viegas. Ainda não o tínhamos visto na rua. O robe, por cima do pijama, e o cachecol enrolado à volta do pescoço, com o qual o encontramos no sofá, das duas vezes em que o visitámos, não escondem o tempo que passa em casa, agora que está doente. Conta que tem sido bem tratado, tanto em hospitais públicos, como privados. Não se alonga, diz que a doença é “complicada”, que os rins não trabalham, que já foi operado, que tem feito tratamentos. Gasta muito, mas tem ADSE.
O sonho de uma casa
Não lhe apetece falar do problema de saúde, há certas coisas de que não se quer lembrar. “Estou vivo.” José Borges prefere recorrer a outras lembranças, diz que é o fundador número 14 da antiga cooperativa. “O meu sonho era ter uma casa para dar convívio à minha família como os outros têm.” Conseguiu. Na sua sala, diante de si tem um móvel com um retrato da família completa, ao lado, a mesa de madeira coberta por uma toalha antiga de renda branca.
Se a memória não lhe falha, foi em 1982 que ele e outras pessoas se juntaram para o projecto da cooperativa – a partir de 25 anos, as casas seriam dos sócios. Os prédios da comprida fila não são, porém, todos da mesma altura, pertencem a fases diferentes. Neste momento, depois do fim da cooperativa, alguns moradores já são proprietários; noutros casos pagam a prestação ao banco.
Mas tudo isto foi já muito depois de, a 14 de Março de 1973, passava pouco das 15h, José Borges ter aterrado, vindo de Cabo Verde, no aeroporto de Lisboa. Ainda Portugal não era um país livre e democrático. “Vim na flor da minha vida”, sorri. Veio à aventura, queria trabalho, a mulher só viria mais tarde. Trabalhou nas obras, numa empresa de limpezas, viveu noutras casas, numa “barraca” nove anos.
Apesar de se lembrar do 25 de Abril de 1974, não sabia o que era uma revolução. Recorda-se de ter ouvido alguém gritar na Praça do Comércio: “Fascistas, fascistas.” Desconhecia o significado da palavra. Hoje diz: “O que estava em jogo em Portugal era a democracia.”
Em Março de 1975, depois de ter sido, juntamente com os outros trabalhadores, indemnizado na empresa onde estava, arranjou emprego na Câmara Municipal de Lisboa como cantoneiro. Reformou-se há três anos, “infelizmente por invalidez”.
José Borges é o marido de Ermelinda Varela, a primeira moradora que diz que não saber ler faz-lhe “muita falta em tudo”. Já a neta, de seis anos, desenha-nos, num papel, com letra ainda fresca, o nome: Miriam. Nessas visitas, também nos cruzamos com o mais novo dos filhos do casal: Edgar, 18 anos. Está num curso de óptica ocular, mas quer ser futebolista. E mais não diz.
A avó ainda insiste para nos falar sobre o futuro, sobre Portugal, mas Edgar Borges não quer. Então, regressa a avó à sua história: se soubesse ler, seria uma mulher “diferente em tudo”. Assim, sente-se isolada: “Sinto-me mesmo do fundo do meu coração.”
Conta que, já em Portugal, chegou a ir à escola à noite, durante um mês, mas como estava grávida e a trabalhar ao mesmo tempo, desistiu. Trabalhava na praça, vendia peixe, fazia as contas com os dedos. Depois começaram os problemas de saúde – coluna, coração, tensão arterial alta, diabetes, colesterol. Foi para casa. Em cima da televisão, na cozinha, estão as embalagens dos medicamentos. Sabe que gasta 224 euros por mês em remédios, o marido ajuda-a. Diz que não recebe reforma, nunca descontou.
Estas são só algumas das histórias deste Sonho de Abril, escada acima, escada abaixo. Alguns sonhos concretizados, outros por cumprir. Há alegrias e mágoas atrás de todas as janelas, em todos os prédios, em todo o lado. E há inconstitucionalidades, às vezes ganham a forma de tristezas, mesmo que seja a tristeza dos olhos doces de Ermelinda.
Está encostada ao balcão da cozinha, nesse dia de avental posto, camisola de gola alta e brincos pretos, morreu-lhe um familiar. A janela aberta, a Primavera lá fora, ao longe vê-se a igreja onde aos domingos a família Borges vai à missa. Todos católicos, e eles são muitos, os dois avós, os nove filhos, que nasceram na Maternidade Alfredo da Costa, oito netos, quatro dos quais em Angola, com os pais. Ermelinda vai misturando, na conversa, a igreja, os filhos, a sua dor. “Sem escola, uma pessoa é viva e é morta, porque é cega.”