Sem uma palavra para o Governo, Marcelo promete pacificar o país
Presidente da República quer "recriar convergências" e "cicatrizar feridas", num discurso que não teve o aplauso das bancadas à esquerda do PS. Marcelo quis puxar pela auto-estima dos portugueses.
O primeiro discurso de Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente da República foi coerente com a mensagem de pacificação “dos hemisférios políticos” deixada na campanha eleitoral das Presidenciais, mas omisso na relação que pretende ter com o Governo de António Costa. O novo Chefe de Estado garantiu “solidariedade institucional indefectível” à Assembleia da República, mas não fez o mesmo relativamente ao Executivo. Nem declarou cooperação, como fizera Cavaco Silva aos dois executivos de Sócrates. No final de meia hora de discurso, foi aplaudido apenas pelos convidados e deputados das bancadas do PS, PSD e CDS.
Assumindo-se como um “Presidente de todos sem excepção”, Marcelo Rebelo de Sousa disse não ser “nem a favor nem contra ninguém”, prometendo manter-se assim “politicamente” até ao final do seu mandato. Só à Assembleia da República o novo Chefe de Estado garantiu “solidariedade institucional indefectível”, justificando com o facto de serem os “dois únicos órgãos de soberania fundados no voto universal e directo de todo o povo”.
Apesar das reuniões que já teve com o primeiro-ministro enquanto Presidente eleito, Marcelo não teve agora nem uma palavra sobre a relação institucional que pretende ter com o Governo. Ao contrário do que fizera Cavaco Silva em 2006, quando tomou posse pela primeira vez como Presidente da República, onde prometeu ao governo então liderado por José Sócrates a sua “inteira disponibilidade e empenhamento numa cooperação leal e frutuosa”. Mesmo cinco anos depois num discurso muito crítico ao Governo PS, Cavaco Silva reiterou o “compromisso de cooperação”, embora avisando que contasse com uma “magistratura activa” na salvaguarda dos interesses nacionais.
Depois de jurar defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa sobre um original da Lei Fundamental, Marcelo Rebelo de Sousa começou por justificar a razão da sua candidatura e depois da sua eleição: “Portugal é a razão de ser do compromisso solene que acabo de assumir”.
A Constituição foi, aliás, invocada várias vezes ao longo do discurso. Marcelo lembrou que foi deputado constituinte há quatro décadas e que a Lei fundamental “continua a ser o nosso denominador comum”. Votou-a, participou nas revisões e ensinou-a ao longo de 40 anos, o que lhe dá responsabilidade acrescida nas funções que agora passa a desempenhar.
Assume-se, por isso, como um “guardião permanente e escrupuloso da Constituição e dos seus valores”. E é nas balizas da Lei fundamental que assumirá os seus “poderes e deveres”: “Sem querer ser mais do que a Constituição permite. Sem aceitar ser menos do que a Constituição impõe”. E é com este quadro constitucional que o país tem “pela frente, tempos e desafios difíceis a superar”, alertou, referindo que a Constituição “não é intocável” mas que exige “consensos alargados” para ser reponderada.
"Recriar convergências, redescobrir diálogos"
A mensagem repetida durante a campanha sobre a necessidade de consensos e de reforço da coesão social foi retomada no discurso da posse. “Temos de cicatrizar feridas destes tão longos anos de sacrifícios, no fragilizar do tecido social, na perda de consensos de regime, na divisão entre hemisférios políticos”, afirmou. Nas suas palavras, a receita passa por “recriar convergências, redescobrir diálogos, refazer entendimentos”. Não será fácil, reconhece, e obriga a “trabalhos forçados” perante um “mundo incerto” e uma Europa a “braços com tensões novas”.
O novo Presidente antecipou os trabalhos do mandato: “Cinco anos de busca de unidade, de pacificação, de reforçada coesão nacional, de encontro complexo entre democracia e internacionalização estratégica, dentro e fora de fronteiras”. É preciso também conciliar “crescimento, emprego e justiça social de um lado e viabilidade financeira do outro”.
Lembrando a “pátria de quase nove séculos”, Marcelo Rebelo de Sousa fez uma longa citação do escritor Miguel Torga para puxar pela auto-estima dos portugueses. “Continuamos a minimizar o que valemos. E, no entanto, valemos muito mais do que pensamos ou dizemos”, disse, depois de já ter sublinhado a necessidade de os portugueses afirmarem o seu “amor-próprio”, a sua “sabedoria, resistência, experiência e noção do fundamental”.
No dia em que Cavaco Silva cessou funções como Presidente, Marcelo recordou-o como uma figura que esteve uma década na chefia do Governo e outro tanto na chefia do Estado, deixando-lhe uma “palavra de gratidão” embora ressalvando que o fazia “independentemente dos juízos que toda a vivência política suscita”.
Perante os deputados e 550 convidados, o novo Presidente saudou o Rei de Espanha, Filipe VI, o Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, e o Presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker, seus convidados pessoais e que correspondem a “coordenadas essenciais da política externa”. Fez também referência aos antigos Presidentes Ramalho Eanes, Jorge Sampaio e Mário Soares (ausente da cerimónia) como “símbolos de continuidade e riqueza” da democracia. Na galeria dos convidados estavam quatro dos dez candidatos à Presidência da República: Sampaio da Nóvoa, Tino de Rans, Paulo de Morais e Jorge Sequeira.
No final da tomada de posse, Marcelo Rebelo de Sousa cumpriu a tradicional sessão de cumprimentos no salão nobre da Assembleia da República, sob o painel representando Bartolomeu Dias a dobrar o Cabo das Tormentas. O líder do PSD, Pedro Passos Coelho, foi um dos últimos a felicitar o novo Presidente, atitude que a assessoria de imprensa explica com o facto de o deputado por "cortesia" ter deixado passar à sua frente convidados que estavam na fila. Relativamente ao almoço que Marcelo ofereceu em Belém, Passos Coelho também não esteve presente por ter viajado para Inglaterra para participar na conferência Oxford Union.
Ferro e a "responsabilidade histórica" de Marcelo
Antes de Marcelo discursar, coube ao presidente do Parlamento sublinhar que “a relação entre Governo e Assembleia da República não dispensa o papel” do Chefe de Estado. E que se a acção do Presidente “não se resume à cooperação” com estes dois órgãos de soberania, também “não se consolida sem ela”. Eduardo Ferro Rodrigues recordou que além dos poderes “formais” conferidos pela Constituição, o Presidente dispõe ainda dos poderes informais “não menos importantes” como “o poder da palavra e o poder de influência”.
O socialista salientou que Marcelo tem agora a “responsabilidade histórica de ser o homem certo no momento certo” – e o “Presidente certo” será aquele que “se enquadra, com autonomia e afirmação, num novo ciclo da vida política democrática”. Disse que as primeiras palavras e os primeiros actos do novo inquilino de Belém “são um bom prenúncio” para a forma como poderá agir como Presidente da República, e que um homem “sintonizado com o país” e que saiba “comunicar” com ele saberá também “comunicar com todos os órgãos de soberania, com todos os partidos políticos e com todos os parceiros sociais. Com todos, por igual.”
Tal como o novo Presidente, Ferro Rodrigues defendeu que “o país precisa de se voltar a reencontrar” e que em democracia “são normais e desejáveis as divergências ideológicas e as políticas alternativas”, mas o objectivo deve ser a união em torno do que é “estratégico”, através da coesão social, para enfrentar os “desafios estratégicos que bloqueiam o nosso crescimento colectivo”. “E isso só se consegue se remarmos para o mesmo lado”, avançou. “Os seus sucessos serão os nossos sucessos – os sucessos de Portugal, os sucessos dos portugueses.”
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