União Europeia quer fluxo de refugiados a zero
Cimeira da UE com a Turquia tenta reactivar sistema de Schengen e impor um novo rumo à crise gerada pela fuga das guerras no Médio Oriente, enquanto na Grécia se acumulam milhares de refugiados que não conseguem passar a fronteira.
Com o espaço Schengen cheio de interrupções e os países a dividirem-se em blocos regionais, trocando acusações, há uma única coisa em que os líderes da União Europeia estão de acordo ao entrarem esta segunda-feira para mais uma cimeira em Bruxelas, com a Turquia, sobre os refugiados que continuam a chegar às ilhas gregas ao ritmo de mais de duas mil pessoas por dia – isto tem de acabar.
“Temos de chegar a um nível próximo do zero. Tem de ser consideravelmente menos do que é agora”, disse Mark Rutte, o primeiro-ministro holandês, que até Junho tem a presidência rotativa da União Europeia.
A Comissão Europeia deposita esperanças na aprovação – e cumprimento por todos os Estados – do plano que apresentou na sexta-feira para regressar a um funcionamento normal do sistema de Schengen até Novembro. “Não podemos ter liberdade de movimentos internamente, se não gerirmos as nossas fronteiras externas de forma eficaz”, sublinhou o comissário europeu das Migrações, Dimitris Avramopoulos. O documento estabelece uma série de metas que a UE tem de cumprir, mas a Grécia é especialmente visada – como um aluno cábula.
Atenas, que acaba de receber novos apoios para acolher refugiados, tem até Maio de ir prestando provas de que está a melhorar o seu sistema de registo dos migrantes que chegam à sua costa. Mas a pressão hoje concentra-se também na convidada especial da cimeira, a Turquia. Este país é o último ponto de partida antes da chegada às Grécia da maioria dos que fogem da guerra na Síria e procuram ajuda na Europa. A ideia é que sejam devolvidos para a Turquia todos os que não cumprem os critérios para serem considerados refugiados.
A troco de um acordo de 3000 milhões de euros, a Europa espera que Ancara invista na melhoria das condições de vida dos 2,7 milhões de refugiados sírios que já acolheu, e que continue a aceitar mais. Deve, além disso, patrulhar de forma eficaz a sua longa costa e travar os traficantes, para que deixem de chegar pessoas desesperadas às costas gregas.
As exigências europeias são muitas – em troca acena-se com a abertura de novos dossiers para uma ainda longínqua entrada da Turquia na União. Ancara pede o fim dos vistos para os seus cidadãos que querem viajar até países da UE e não tem mostrado entusiasmo perante os pedidos urgentes da parte da Europa.
Mas o comissário europeu Guenther Oettinger, alemão e do partido da chanceler Angela Merkel, avisou, numa entrevista à revista Spiegel, que a UE poderá ter de se preparar para pagar bastante mais à Turquia – provavelmente mais do dobro dos 3000 milhões de euros, e para lá de 2017. “Assumir os custos dos serviços que a Turquia está a prestar aos refugiados, de habitação e outros cuidados, pode ser uma conta muito para além dos seis ou sete mil milhões de euros por ano”, disse Oettinger. Para os custear, sugeriu a criação de um novo fundo europeu, semelhante aos criados para os resgates dos bancos.
Metas para a Grécia
A UE precisa de soluções – e rapidamente –, para a chamada “crise dos refugiados”, que está a ameaçar a unidade europeia e a integridade do espaço europeu de livre circulação de pessoas (Schengen). Dos 26 países que o integram, oito reintroduziram o controlo de pessoas nas suas fronteiras internas (Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Eslovénia, Hungria, Noruega e Suécia), por não quererem continuar a receber refugiados ou simplesmente por não quererem que eles passem pelo seu território. Alguns concertaram-se para construir uma espécie de linha de fronteira interior da UE – deixando a Grécia de fora, com os refugiados a acumularem-se, sem poderem seguir caminho.
Sobre a Grécia pende ainda a ameaça de ser suspensa do espaço Schengen, porque alguns países consideram que não faz a devida triagem das 2000 a 3000 pessoas que diariamente chegam às ilhas próximas da costa turca, de forma a mandar imediatamente para trás as que possam ser consideradas apenas imigrantes económicos e não refugiados. Ainda que isso pareça injusto.
“Seria absolutamente lamentável e anti-europeu isolar ou suspender a Grécia do espaço Schengen através da reintrodução, por parte dos restantes Estados Schengen, dos controlos nas suas fronteiras comuns com a Grécia”, diz Nuno Piçarra, professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.
Essa ameaça, no entanto, é de difícil concretização, pois têm de ser os Estados-membros visados a iniciar o processo. E mesmo que, “em circunstâncias excepcionais em que seja posto em risco o funcionamento global do espaço Schengen” (devido a “deficiências graves e persistentes no controlo das fronteiras externas”), o Conselho Europeu proponha a reintrodução do controlo nas fronteiras exteriores, depois de receber uma proposta nesse sentido da Comissão – alertada por um ou mais países – será ainda preciso avisar o Parlamento Europeu. Se após cumprir o complicado processo burocrático houver uma decisão positiva, está prevista no Código das Fronteiras Schengen, nos artigos 23º. A 31º., a possibilidade de reintroduzir o controlo nas fronteiras exteriores da UE, por períodos de seis meses renováveis até três vezes.
“Qualquer Estado Schengen na situação da Grécia teria uma grande dificuldade em lidar com este fenómeno, mesmo sem estar económica e financeiramente tão enfraquecido como se encontra a Grécia”, sublinha Nuno Piçarra.
A fraqueza de Merkel
Mas a desconfiança e a falta de solidariedade entre os países-membros da UE tornaram-se características desta crise, transformando-se num espectáculo tenso, quase desde os primeiros momentos, quando a Hungria de Victor Orbán anunciou a intenção de erguer muros para evitar a entrada de refugiados.
“A crise do euro abriu novas divisões e reduziu a confiança e a solidariedade entre os Estados-membros, o que tornou ainda mais difícil lidar com este problema”, analisa Stephan Lehne, especialista em política externa da UE pós-Tratado de Lisboa no think tank Carnegie Europe em Bruxelas.
Angela Merkel teve um papel decisivo na crise do euro, embora tenha criado muitos anti-corpos. Foi igualmente determinante na crise dos refugiados, ao abrir as fronteiras da Alemanha, tornando-se uma espécie de referência moral da Europa, quando outros procuravam fechar-se na sua concha e recuavam perante a maré humana que chegava pedindo ajuda. Mas agora é a Alemanha que precisa de ajuda, depois de receber 1,1 milhões de refugiados em 2015.
A chanceler alemã ficou mais vulnerável no xadrez europeu. “Angela Merkel continua a ser a líder mais poderosa da UE. Mas hoje tem menos seguidores. E o facto de a Alemanha ter de longe o maior número de refugiados e agora precisar de solidariedade em vez de poder oferecê-la aos outros fez claramente diminuiu a autoridade de Berlim na UE”, diz Stephan Lehne ao PÚBLICO.
O chanceler austríaco, Werner Faymann, exigiu este domingo, em declarações ao jornal Kurrier, que Berlim diga qual o número de pedidos de asilo que aceitará este ano para ajudar a limitar o fluxo de refugiados. “A Alemanha deve dizê-lo claramente, se não os refugiados vão continuar a ir para lá”, disse Faymann. A Áustria declarou já que não dará asilo a mais de 37.500 pessoas este ano, depois de, em 2015, ter recebido 90 mil pessoas – o equivalente a 1% da sua população.
Enquanto os líderes europeus se reúnem em Bruxelas, a Grécia transforma-se num imenso campo de refugiados – há cerca de 40 mil em todo o país, dos quais cerca de 18 mil estão junto à fronteira encerrada com a Macedónia, em Idomeni, e os números podem chegar a 100 mil rapidamente.
“O Governo já anunciou a abertura de vários centros de abrigo temporário por todo o país, sobretudo no Norte e no Oeste. E em Atenas há dois grandes abrigos, em Elliniko e Schisto”, explica ao PÚBLICO Christina Velentza, advogada grega com larga experiência no trabalho com requerimentos de asilo e direitos humanos, actualmente no think tank Chatham House, em Londres.
“Há muitas redes de solidariedade. Os gregos têm ajudado os refugiados, no continente e nas ilhas. Mas tem havido tensões e protestos na ilha de Kos”, explica. Ali a população e o presidente da Câmara estão contra a construção de um centro de triagem dos migrantes pretendido pela União Europeia – os famosos hotspots, que a UE tem exigido à Grécia e a Itália, e que estão na base da estratégia concebida por Bruxelas para identificar rapidamente quem poderá entrar no circuito dos pedidos de asilo e quem deverá ser rejeitado, e enviado para trás.
E o Brexit?
Dos planos da UE faz parte a criação de uma polícia de fronteiras e costeira tão rápido quanto possível – a presidência holandesa comprometeu-se a criá-la, no papel, até Junho, esperando-se que esteja operacional até ao fim do ano.
Com as fronteiras a funcionarem normalmente e a nova polícia em acção, a Comissão espera que o regulamento de Dublin – que permite devolver um migrante cujo pedido de asilo foi recusado ao primeiro país da UE onde foi registado – volte a funcionar. Esse foi o princípio do problema, que levou a Itália e a Grécia a deixarem passar pelos seus territórios os que chegavam aos seus portos mas queriam seguir para países com economias mais fortes, como o Reino Unido, a Alemanha e a Holanda.
A insistência burocrática na definição de "imigrante económico" e "legítimo requerente de asilo" ameaça continuar a emperrar o mecanismo. “A prova de origem ou proveniência síria leva, em princípio, a qualificar a pessoa como ‘manifestamente carecida de protecção internacional’”, diz Nuno Piçarra. Mas “a actual política de protecção internacional da UE assenta na distinção entre ‘pessoas com necessidade de protecção internacional’ (entre elas, as que fogem de situações de guerra generalizada) e, ‘imigrantes económicos’. Estes, se não estiverem na posse dos devidos vistos ou autorizações de residência num Estado-membro, são considerados ‘migrantes irregulares’ e não devem poder entrar ou permanecer no respectivo território”, explica. Só que essa fronteira nem sempre é fácil de traçar. “É preciso aplicar estes conceitos com a devida flexibilidade”, aconselha este professor de Direito Constitucional e Europeu.
E se após esta cimeira – e uma outra marcada mais para o meio do mês – “a dinâmica do primado das acções não coordenadas dos Estados” não regressar ao mais pacato processo de busca de “soluções coerentes ao nível europeu”, no bom calão burocrático da UE utilizado por Stephan Lehne?
Não seria a primeira vez que decisões sobre a crise dos refugiados acordadas em cimeiras eram abertamente desrespeitadas pelos governos nacionais.
“Permitir a entrada no seu país é um conceito central da soberania nacional. Apesar das regras de Schengen, os Estados-membros não parecem nada dispostos a delegar esta decisão nas instituições europeias”, responde Lehne.
O mais grave, mesmo, seria que o sistema de Schengen entrasse numa grave crise – ou tivesse de ser suspenso – na altura do referendo britânico sobre a permanência do país na União Europeia, marcado para 23 de Junho. “Há excelentes hipóteses de os britânicos votarem a favor de continuarem. O maior risco seria se a UE tivesse um falhanço espectacular na questão migratória durante o período final da campanha [do referendo]”, conclui o analista.