Petição, ameaças, polícia: o Alentejo de Henrique Raposo no centro de uma polémica

Alentejo Prometido será lançado dia 8 em Lisboa com protecção policial. Fundação Francisco Manuel dos Santos, que edita o livro, desvaloriza a "discussão".

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O percurso de Alentejo Prometido começa em Santiago do Cacém RUI GAUDÊNCIO

O livro ainda não foi lançado oficialmente, mas já há dias que instalou a polémica nas redes sociais e na imprensa. Diz quem o ataca no Facebook e nas caixas de comentários de blogues, jornais e revistas que Alentejo Prometido, de Henrique Raposo, faz um retrato completamente desajustado do Alentejo e de quem lá vive, um retrato que nada tem a ver com a realidade e que peca pela generalização, partindo daquilo que é, segundo o autor, a história da sua família.

A batalha instalada, com muitos comentários insultuosos e artigos de opinião a defenderem, em nome da liberdade de expressão, o direito do autor a escrever o que escreveu, parece estar para durar. As críticas, que têm subido de tom na Internet e que levaram já a uma petição contra a venda do livro, que conta com mais de 2.200 assinaturas, condicionaram a sua apresentação pública, que viu dia e local alterados. No lançamento, reagendado para dia 8, terça-feira, na Livraria Bertrand do Picoas Plaza, em Lisboa, estarão agentes da PSP. A presença policial, que segundo o Diário de Notícias será discreta, deve-se às ameaças anónimas que Henrique Raposo começou a receber depois de ter falado sobre o livro num programa da SIC Radical – Irritações, conduzido por Pedro Boucherie Mendes –, e de o capítulo dedicado ao suicídio ter sido pré-publicado pelo jornal online Observador.

Na SIC Radical, Raposo falou de alguns dos temas que o livro aborda, entre eles o da naturalidade com que, na sua opinião, os alentejanos encaram o suicídio, e o das mulheres que durante décadas foram alvo de abusos vários, incluindo violações, sem nunca os denunciarem.

Cronista do semanário Expresso desde 2008, Henrique Raposo está habituado a polemizar os assuntos, mas é provável que não antecipasse o efeito das suas palavras no programa de Boucherie Mendes. Desde então, foi até criada uma página do Facebook chamada Henrique Raposo – o Inimigo N.º 1 do Algarve e do Alentejo, que tem já quase 11.200 seguidores, onde o autor é acusado de falar de uma realidade que está muito longe de conhecer de perto, por mais que evoque laços familiares.

O todo pela parte

Em Alentejo Prometido, um pequeno volume de 107 páginas publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, Henrique Raposo cruza dados pessoais com a história da região, indo buscar números e factos que corroboram a sua visão de um território que está nas suas raízes, mas que sempre viu de fora, mesmo com as visitas nas férias grandes e no Natal. Este Alentejo é contado na primeira pessoa porque parte de uma viagem pelas suas memórias, e pelas da família, uma viagem que começa no Verão de 2015, com o regresso à aldeia dos avós, Foros de Pouca Sorte, Santiago de Cacém, no litoral, a propósito do casamento de um primo.

É por causa deste lado muito pessoal que, diz ao PÚBLICO António Araújo, director de publicações da Fundação Francisco Manuel dos Santos, “toda a discussão à volta do livro está esvaziada de sentido”. O livro cumpre, explica, uma “trajectória autobiográfica”, não tem quaisquer ambições científicas: “É claro que muitos poderão discordar da visão que Henrique Raposo tem do Alentejo, estão no seu pleno direito, mas não devem esquecer que essa é uma visão pessoal, que parte de um percurso. Este livro não é um ensaio… É um conjunto de histórias que fazem parte da memória do autor, não têm outra pretensão, não são antropologia”, acrescentou, lamentando as tentativas feitas para limitar a liberdade de expressão do autor.

Lembrando, no entanto, que as opiniões expressas pelo cronista em Alentejo Prometido não vinculam a fundação – este é, aliás, o aviso feito em cada um dos 15 títulos já publicados na colecção Retratos da Fundação, a que pertence o livro de Raposo , Araújo defende ainda que o nível da discussão instalada não tem sequer dimensão para que lhe possamos chamar uma polémica. “Exceptuando alguns artigos de opinião, o debate parece ter saído das caixas de comentários de um blogue. Não há argumentos, e muito menos argumentos sérios.”

Na colecção Retratos, diz o director de publicações, há outros títulos sobre o Alentejo que também focam realidades que poderiam vir a suscitar debate, como Terra Firme, de José Navarro de Andrade, que acompanha um ano na vida de uma grande propriedade agrícola, e Escola, que se centra num programa de combate ao insucesso escolar em Portalegre, com crianças de um meio social que é descrito como pobre e inculto. Dois livros com o registo de reportagem que não encontramos em Alentejo Prometido. “Nenhum destes livros foi objecto deste tipo de críticas.”

Entre os que o contestam estão precisamente os que defendem que o autor de 36 anos “faz juízos de valor”, misturando “factos” com “memórias”, e tomando o todo pela parte.

Henrique Raposo, que não tem falado com os jornalistas, defendeu-se numa crónica no Expresso e numa nota do Facebook em que explicava por que razão não prestaria declarações: “[…] Não tenho de responder a nada. Não se responde a uma multidão ou multidões que me acusam não sei do quê. Isto é uma espécie de tribunal popular e eu não me vou sentar no banco dos réus. Quando alguma entidade ou figura escrever uma contra-argumentação (e argumentar não é dizer ‘és uma besta’ ou ‘não sabes nada do Alentejo’), então sim, eu poderei responder e defender o meu livro. Isto é o B, A, BA da liberdade e do espaço público e está a ser preciso recordá-lo em 2016.”

Raposo pega nas histórias da avó Diamantina e do avô Inácio, da Dorinda e do Jacintinho, e em “meios-primos” e “meias-primas” para traçar o perfil de um povo pouco aberto, “o mais formal do país”, que sofreu com a pobreza, a iliteracia e o isolamento, que “só é espontâneo para dizer ‘mato-me’”, escreve em Alentejo Prometido. Afirmações que estão a dividir os alentejanos entre aqueles que o atacam, sobretudo nas caixas de comentários e no Facebook, e os que o defendem na imprensa, como dois dos jornalistas da revista Sábado.

Entre as frases sujeitas a polémicas, pode muito bem estar esta: “No Alentejo, a eutanásia não é um debate, é um modo de vida; o suicídio alentejano não é um acto individual, é uma prática colectiva.” Ou esta: "A sociedade alentejana criou uma cultura que legitima o suicídio."

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