“Blood, sweat and… fears”
1.Foi uma cimeira que não seguiu exactamente o figurino habitual nestes tempos de crise europeia. Em primeiro lugar, a decisão da chanceler alemã de permanecer longe dos holofotes e das negociações e deixar que os outros “se entendessem”, é uma novidade. Antes de chegar a Bruxelas, Angela Merkel tratou de não deixar dúvidas sobre aquilo que realmente pensava sobre a negociação com o Reino Unido: mantê-lo na União é do “interesse nacional” alemão; muitas das suas reivindicações são perfeitamente justas. Limitou-se a esperar por um acordo que acabaria por ser alcançado para dar a Cameron a possibilidade de travar, a partir de agora, a sua “batalha pela Europa”. Merkel também sabia que o seu homólogo britânico precisava de uma cimeira de três camisas” (bastaram-lhe duas) para provar aos britânicos que se tinha batido “com sangue, suor e lágrimas” pelos interesses do seu país. Donald Tusk fez o seu trabalho prévio para aproximar posições e resolver “linhas vermelhas”. Quando já só sobrava o conflito com a Polónia sobre os direitos dos emigrantes que trabalham em Inglaterra, deixou Cameron e Beata Szydlo a negociarem sozinhos numa atribulada corrida contra o tempo. Depois de sete anos em que a Polónia, liderada pelo partido liberal de Tusk, se transformou num parceiro europeu responsável, a Europa vê-se de novo a braços com o mesmo governo nacionalista e hiperconservador com que teve de lidar há nove anos para fazer aprovar o Tratado de Lisboa. Mas, feitas as contas, Cameron regressou à pátria, não apenas com uma vitória mas com um novo discurso pró-europeu mais convincente.
2. A distância mantida pela “senhora que costuma mandar” quis significar que esta a não era a batalha mais importante que tem pela frente em Bruxelas. A sua prioridade está na questão dos refugiados, que vê como uma ameaça directa à integração europeia e aos seus valores fundamentais, mas que é também um problema político para a sua liderança, muito criticada internamente. Separou os dois dossiers, garantindo uma nova cimeira a 6 de Março, precedida de um encontro entre os líderes europeus e a Turquia, que a chanceler considera fundamental para aliviar a pressão dos refugiados sobre a Alemanha. Na sexta-feira, disse aos jornalistas que o resultado mais importante da cimeira tinha sido o acordo sobre a prioridade dada à Turquia. Tem perfeita consciência de que os seus parceiros europeus não estão com grande disposição de lhe fazer a vontade (Portugal é uma boa excepção), que rejeitam o sistema de quotas e que, até agora, preferem erguer arame farpado nas suas fronteiras e culpar o vizinho do lado.
3. François Hollande também foi uma presença discreta, embora as suas exigências ainda tivessem alguns laivos de um passado já muito distante, quando França via a Europa como a extensão do seu poder e a Inglaterra como o Cavalo de Tróia dos americanos (hoje, se Obama tem um aliado para os conflitos no Médio Oriente, ele é o Presidente francês). A sua defesa da “união cada vez mais estreita” (“ever closer union”), inscrita em todos os tratados, mas à qual já ninguém liga muito, corresponde a esse resquício do passado. A França, que rejeitou a Constituição europeia em 2005, também dispensa mais integração para defender os seus interesses, até porque a sua opinião pública não está receptiva. Hollande tem uma única preocupação: conseguir a reeleição em Abril do próximo ano. Já entrou em mood eleitoral. Os atentados terroristas de Paris permitiram-lhe apresentar-se como um líder forte capaz de manter o seu país em segurança. As palavras “imigrante” ou “refugiado” não são hoje em dia nada populares em França, alimentando a Frente Nacional, e o desemprego continua a crescer. Os franceses culpam a chanceler pelas suas decisões unilaterais em matéria de refugiados e não estão receptivos a mais quotas.
4. De resto, as linhas de batalha em torno dos emigrantes europeus e do seu direito à livre circulação e à não-discriminação definem-se, não em função de princípios fundamentais, mas do interesse de cada um, abrindo outra divisão entre os países de emigração e os de imigração, que correspondem às divergências económicas entre o Norte e o Sul. Cameron sabe tão bem como qualquer outro líder europeu que a maioria dos que vão para Inglaterra têm como único objectivo encontrar trabalho melhor e mais bem pago (o que é mais fácil no seu país) e não para o “turismo social” de que são acusados pelos britânicos, mas também pelos alemães ou pelos austríacos. E sabe ainda que uma das grandes vantagens do seu país é estar a registar um crescimento acelerado da população, graças a essa imigração e a uma taxa de natalidade bastante superior à média europeia. É uma enorme vantagem para o futuro que, por exemplo, a Alemanha não tem, com a sua população a diminuir e a envelhecer. Mais gente produz mais riqueza, mais gente nova dinamiza a sociedade e torna-a menos conservadora. Mas, como dizia o historiador britânico Timothy Garton Ash, o erro maior do primeiro-ministro britânico foi fazer depender o futuro do seu país dos abonos de família dos polacos. Terá agora muito pouco tempo para dissolver este imbróglio e convencer os britânicos que não devem temer a União Europeia.
Até lá, a todos os que ainda acreditam que a Europa pode ser salva, só lhes resta fazer figas e invocar o maior de todos os políticos britânicos do século XX. Há sempre uma frase de Churchill que consegue apontar para o que é essencial. “Blood, sweat and… fears”, escreveu ontem o site Politico, numa das suas análises sobre a cimeira. É o medo que está a mais, um sentimento que o velho leão britânico necessariamente desconhecia.