Fim da nota de 500 euros "é um passo na direcção certa"
Director-geral do organismo europeu de luta antifraude (OLAF), Giovanni Kessler, diz que o BCE “vai tomar a decisão certa”, no sentido de acabar com as notas de montante mais elevado, conhecidas como "Bin Laden", e que chegam a ser transaccionadas acima do seu valor nos circuitos criminosos.
O director-geral do organismo europeu de luta antifraude (OLAF), Giovanni Kessler, não tem dúvidas sobre o fim da nota de 500 euros: “É um passo na direcção certa”, afirmou ao PÚBLICO. O tema entrou na agenda depois de uma série de altos responsáveis europeus, desde o presidente do BCE, Mario Draghi, ao presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, terem avançado com esse cenário.
O último sinal veio mesmo do presidente do banco central da moeda única, quando, na segunda-feira, afirmou aos deputados do Parlamento Europeu que anota de 500 euros “é cada vez mais vista como um instrumento para actividade ilegais. Neste contexto, estamos a considerar acções”, ou seja, acabar com a nota mais valiosa.
Esta foi a segunda vez, no espaço de pouco tempo, que Draghi falou no assunto. “Acredito que o BCE vai tomar a decisão certa”, diz Giovanni Kessler, um defensor do fim deste tipo de numerário. “O dinheiro é o principal meio de pagamento dos crimes financeiros, principalmente no caso de branqueamento de capitais, corrupção e financiamento do terrorismo. E quando dizemos «dinheiro», estamos principalmente a falar de nota de elevado valor, como a de 500 euros”.
Questionado sobre se o mesmo problema não ocorre com a nota de 200 euros (a mais elevada nos Estados Unidos é a nota de 100 dólares), Kessler concorda que há de facto um problema similar, mas que a de 500 euros é a mais usada nos esquemas de negócios ilícitos. “A nota de 500 euros é tão poderosa e procurada que passou a ser apelidada de «Bin Laden»”, refere, acrescentando que a sua importância é de tal ordem que em alguns circuitos criminosos chega a ser transaccionada por um valor superior ao nominal.
O ataque à nota de 500 euros, no entanto, dificilmente será uma solução mágica. Manuel dos Santos, porta-voz da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da Polícia Judiciária, admite que o fim das notas de 500 euros não resolve o problema do branqueamento de capitais. “São mais fáceis de transportar, pelo que o seu fim pode obrigar a utilizar duas malas em vez de uma”, ironiza, em declarações ao PÚBLICO.
Para o porta-voz da UNCC, a unidade para onde são dirigidas em Portugal muitas denúncias ou meras comunicações de transacções suspeitas, ” o branqueamento de capitais também está muito associado a crimes fiscais e não apenas a corrupção ou outras práticas criminais”. E nessa medida, defende Manuel dos Santos, a limitação de pagamentos em dinheiro poderia ajudar, mas desde que acompanhada de outras medidas, designadamente “o fim das offshores”.
Outras medidas
Dentro da Comissão Europeia tem sido equacionada uma outra medida, bem mais polémica, mas que poderia ter resultados mais ambiciosos no combate ao branqueamento de capitais e na fuga ao pagamento de impostos. Trata-se da fixação de limites aos pagamentos com notas em todos os Estados-membros europeus. No início do corrente mês, a Bruxelas propôs um plano de acção para reforçar a luta contra o financiamento do terrorismo, através de um controlo dos fluxos financeiros, como os cartões pré-pagos e as moedas virtuais, mas nada prevê em relação a limitações de pagamentos em dinheiro.
Alguns países, como França, já têm um limite para residentes de 3000 euros para pagamentos em dinheiro. E a Alemanha, a grande impulsionadora da criação da nota de 500 euros (que tem um valor equivalentes à antiga nota de 1000 marcos), admite a possibilidade de criar um tecto máximo de 5000 euros.
A fixação de limites ao pagamento em dinheiro seria certamente bem recebida pelo sistema financeiro, mas implicaria custos para os cidadãos, uma vez que a alternativa aos pagamentos em dinheiro seriam as transferências bancárias, onde se tem generalizado o pagamento de comissões, e a aceitação de cheques, o que para além dos custos tem ainda alguns riscos de boa cobrança.
Já no âmbito de iniciativas comunitárias anteriores, a legislação portuguesa impõe um conjunto de regras às instituições financeiras e a muitas outras empresas, como mediadoras imobiliárias e a outras empresas ligadas a transacção de bens, de forma a impedir ou a denunciar operações suspeitas.
No âmbito da Lei nº 25/2008, as entidades abrangidas são obrigadas a exigir e verificar a identidade dos clientes quando são efectuadas transacções ocasionais de montante igual ou superior a 10.000 euros, independentemente de a transacção ser realizada através de uma única operação ou de várias. Entre outros deveres, as entidades devem informar o Procurador-Geral da República e a Unidade de Informação Financeira “sempre que saibam, suspeitem ou tenham razões suficientes para suspeitar que teve lugar, está em curso ou foi tentada uma operação susceptível de configurar a prática do crime de branqueamento ou de financiamento do terrorismo”.
Questionado sobre se devia existir um tecto para pagamentos em dinheiro, o director geral da OLAF diz que essa é ”uma outra questão”, que tem de ser devidamente ponderada para aumentar a transparência das transacções financeiras. “Antes de dar passos nessa direcção”, diz, “é preciso primeiro resolver a questão do fim das notas de elevado valor”. Um passo de cada vez, portanto.
O início do fim
Até há pouco tempo, a nota de 500 euros tinha um estatuto inquestionável no centro do euro. Em 2012, numa resposta a um deputado europeu que questionava a existência de nota de elevado valor, Mario Draghi defendia a sua existência, afirmando que cumpriam um “importante papel” como armazenamento de riqueza, tanto na Europa como fora dela. E que o ambiente de baixas taxas de juro e inflação contribuía para que houvesse um maior recurso a guardar notas de elevado valor. Quanto à sua origem, recordava que, em Janeiro de 2002,quando a moeda única passou a ser uma realidade, havia seis países com notas que equivaliam às de 200 e 500 euros (obviamente, Portugal não estava entre eles, ao contrário, por exemplo, da Alemanha, Itália, e Luxemburgo).
No dia 11 de Fevereiro deste ano, numa acção que estaria certamente concertada a nível do BCE, o francês Benoit Coeuré, membro da comissão executiva do banco central, deu uma entrevista ao Le Parisien onde afirmou que os motivos para a existência da nota de 500 euros eram agora “menos convincentes”. Destacando também a importância de combater as actividades criminais, Coeuré destacou que cerca de 20% do valor das notas em circulação está fora da zona euro, com destaque para a Rússia e para a Europa de Leste. E que a maior parte desse dinheiro está em notas de 50 a 500 euros.
No final da entrevista, Benoit Coeuré lançou ainda uma mensagem para tentar tranquilizar algumas ansiedades europeias: “Há pessoas, principalmente na Alemanha, que estão ansiosas com o desaparecimento dos pagamentos em dinheiro, para quem isso representa um elemento da sua liberdade pessoal. É um argumento legítimo, e quero assegurar que não se trata de acabar com as notas em geral. A discussão é só sobre as de 500 euros”.
E, se antes um relatório da Comissão Europeia já chamara a atenção para a forte procura destas notas por parte do crime organizado, um dia após a entrevista dada por Coeuré foi a vez do presidente do Eurogrupo manter o assunto na ordem do dia. “Vamos pedir ao BCE para avaliar o acesso às notas de 500 euros” afirmou Dijsselbloem, num tom mais diplomático e político do que o dos membros do banco central.
A Grã-Bretanha, que está fora do euro, e onde a nota maior é a de 50 libras, proibiu em 2010 as casas de câmbios de negociarem notas de 500 euros, precisamente para travar a lavagem de dinheiro (isto após uma investigação da Serious Organised Crime Agency). E o certo é que há muitos estabelecimentos a nível europeu que se recusam a aceitar estas notas, marcando essa atitude com a devida sinaléctica. Em Portugal, isso não é prática comum, mas certamente porque raramente se vê uma.
A decisão do BCE deverá ser tomada em breve, mas, para já, nada se sabe sobre os timings. Mas com todas estas declarações, pode-se tomar como certo que não haverá uma nova versão das notas de 500 euros (que equivalem ao salário mínimo em Portugal), tal como existe já com as suas irmãs de 5, 10 e 20 euros (e que irá chegar à de 200 euros a médio prazo). Assim sendo, será a primeira criação do euro a ser eliminada, com a moeda de um cêntimo a mostrar a sua resistência no mercado. Este não seria um caso inédito. Nos EUA já existiram várias notas de 500 dólares, tendo a última sido criada em 1945 (com a cara do presidente William McKinley). A nota acabaria por ver os seus dias terminarem em 1969, mas se alguém a quiser usar para ir às compras ainda pode.
No caso da nota de 500 euros, não se sabe como será ditado o seu fim. Mas o processo levaria certamente à entrada no circuito legal, via depósitos, de notas guardadas para outros fins, e de várias outras que estão simplesmente guardadas por falta de confiança ou necessidade de ter numerário em causa. Parte desse valor poderia reentrar em circulação, embora muito facilmente voltasse a ficar guardado em cofre pessoais ou debaixo do colchão, mas em notas de 200 e 100 euros.
Notícia corrigida: a nota de marco com valor próximo dos 500 euros era a nota de 1000 marcos e não a de 100, como estava escrito.