Ministério da Educação violou dever de sigilo

Despacho da secretária de Estado Alexandra Leitão divulgou suspeitas sobre a antiga direcção da Escola Artística Soares dos Reis, que são confidenciais e nunca foram comprovadas.

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Em Janeiro, os alunos da Soares dos Reis exigiram o regresso da antiga direcção Luís Efigénio

O Ministério da Educação (ME) publicou em Diário da República o teor das suspeitas que o levaram a instaurar processos disciplinares contra os antigos responsáveis pela Escola Artística Soares dos Reis, quando estes ainda se encontram em fase de sigilo. Aconteceu na semana passada, através de um despacho assinado pela secretária de Estado Adjunta e da Educação, Alexandra Leitão, que afasta de funções o director-geral dos estabelecimentos escolares.

Para justificar esta decisão, Alexandra Leitão optou por descrever os incidentes que estiveram na origem do afastamento de José Moreira Duarte, mas, ao fazê-lo, divulgou publicamente suspeitas que são confidenciais e que põem em causa outras pessoas, no caso os antigos director e subdirector da Soares dos Reis, respectivamente Alberto Teixeira e José Fundo. Segundo especialistas em Direito Administrativo ouvidos pelo PÚBLICO, com este procedimento a secretária de Estado violou o dever de sigilo e o princípio da presunção de inocência. Também os antigos responsáveis da Soares dos Reis se dizem alvo de uma "condenação sumária e ilegal", que foi decidida sem nunca terem sido ouvidos sobre os factos que lhes são imputados e que são por eles negados.

Através do seu gabinete de comunicação, o ME garante que a publicação das suspeitas que levaram à instauração dos processos disciplinares contra a antiga direcção da Soares dos Reis, cuja instrução ainda está no início, “não expressa uma presunção de culpabilidade sobre as pessoas alvo desse inquérito” e que será apenas “no término dos processos disciplinares que, naturalmente, se determinará a existência ou não e eventual grau de culpabilidade” de cada um dos visados.

Uma das razões alegadas para o afastamento do director-geral dos estabelecimentos escolares foi o não cumprimento de uma ordem dada pelo ex-secretário de Estado de Nuno Crato, João Casanova de Almeida, determinando a dissolução da direcção da Soares dos Reis, na sequência de um processo de inquérito realizado pela Inspecção-Geral da Educação e Ciência (IGEC). Esta decisão deveria ter sido comunicada aos visados pelo director-geral que foi agora afastado, o que este fez com três meses de atraso: o despacho de dissolução da direcção da escola do Porto foi assinado, por Casanova de Almeida, a 19 de Agosto, mas o seu teor só foi transmitido aos responsáveis da Soares dos Reis a 25 de Novembro, na véspera da posse do Governo de António Costa.  

Segundo o ME, “não seria possível invocar” o facto de o director-geral não ter cumprido uma ordem superior, “sem explicitar na redacção e detalhe, o contexto em que o acto foi praticado” e daí, acrescenta, se justifica a opção de divulgar as suspeitas que recaem sobre a antiga direcção da Soares dos Reis.

Ressalvando que não conhece o caso em detalhe, a professora de Direito Administrativo da Universidade Católica, Raquel Carvalho, explica que “os procedimentos disciplinares [como os que foram instaurados contra a antiga direcção da Soares dos Reis] são de natureza secreta até à acusação, nos termos do disposto no artigo 200.º da Lei de Trabalho em Funções Públicas” e que, portanto, “o dever de sigilo é imperativo até esse momento procedimental”.

Raquel Carvalho, que tem vários trabalhos publicados sobre o regime disciplinar dos trabalhadores em funções públicas, refere, por outro lado, que o “princípio da presunção de inocência dos arguidos disciplinares é um garantia aplicável no procedimento disciplinar e que se mantém até existir aplicação da sanção disciplinar inimpugnável”, o que também ainda não sucedeu.

Os advogados especialistas em Direito Administrativo, Paulo Veiga e Moura e Jorge Correia, apontam no mesmo sentido. “A secretária de Estado cometeu uma sucessão de ilegalidades. Violou a obrigação de sigilo a que está sujeita ao revelar factos de processos disciplinares que ainda estão numa fase sigilosa. E, mais grave ainda, violou o princípio constitucional da presunção de inocência ao alegar factos que ainda não estão comprovados”, afirma Paulo Veiga e Moura, que tem sido também juiz de tribunais arbitrais em matéria de emprego público.

Para Jorge Correia, o único respaldo da secretária de Estado r seria o de ter evocado, no despacho que publicou em Diário da República, que os factos enunciados “ainda não foram dados como provados”. Como não o fez, este advogado entende também que houve “uma violação do dever de confidencialidade e do princípio da presunção de inocência, que se mantém até que exista decisão” sobre os processos.

"Condenação sumária"
Este é mais um episódio de um processo que soma incidentes. No despacho assinado pelo ex-secretário de Estado Casanova de Almeida, a 19 de Agosto, a dissolução da direcção da Soares dos Reis, um procedimento previsto no regime de gestão e autonomia das escola, é justificada com as conclusões a que chegou a IGEC, num relatório datado de Julho de 2015. Com base neste documento, mas sem revelar quais os factos alegadamente apurados, Casanova de Almeida considerou que houve uma “manifesta degradação ao nível da gestão e administração” da escola e que os responsáveis se alhearam das “suas competências, causando prejuízo importante aos interesses patrimoniais que lhe foram confiados”, que terão envolvido fundos da escola. 

A antiga direcção, cujos elementos nunca foram ouvidos pela IGEC no âmbito da acção inspectiva, só foi informada três meses depois desta decisão, que teve efeitos imediatos com a nomeação, no dia seguinte, do presidente da Comissão Administrativa Provisória, que actualmente dirige a Soares dos Reis em substituição dos antigos responsáveis.

Também só nessa altura, em Novembro, é que Alberto Teixeira e José Fundo foram informados de que, em Julho, lhes tinham sido instaurados processos disciplinares na sequência da acção da IGEC. Esta é uma das alegações que consta da providência cautelar que interpuseram em Dezembro com vista à suspensão da decisão de dissolução da direcção, revelou Alberto Teixeira.

Neste documento, sobre o qual esperam que exista decisão em breve do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, os ex-responsáveis da Soares dos Reis consideram que o acto decidido por Casanova de Almeida é “manifestamente ilegal”, porque, entre outras alegadas irregularidades, não se encontra devidamente fundamentado, tendo também a sanção sido aplicada antes da conclusão de qualquer procedimento disciplinar. Para Alberto Teixeira, tratou-se de “uma condenação sumária” com base em “alegadas irregularidades” detectadas num inquérito em que “nunca foram ouvidos”.

ME defende Casanova
A resolução fundamentada que o ME apresentou no tribunal, para impedir que a providência cautelar tivesse efeitos imediatos, já foi assinada pelo actual ministro Tiago Brandão Rodrigues, que subscreve por inteiro as conclusões a que chegou o secretário de Estado de Nuno Crato.

Ao PÚBLICO, o ME justificou assim esta concordância: “O relatório final do processo de inquérito tinha já sido analisado pelo membro competente” do anterior executivo PSD/CDS, “que com ele concordou, e cujas conclusões considerou suficientemente graves para ter determinado a dissolução imediata da direcção”. Ou seja, explicita, “o que estava em causa era a defesa jurídica [do despacho de Casanova de Almeida] junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto e não proceder a uma reanálise do processo de inquérito”.

O ME frisa também que “não se compreende a insistência colocada pela jornalista no facto de, no âmbito da investigação realizada no processo de inquérito, não terem sido ouvidos os visados”. Para o ministério trata-se de algo previsto na lei, uma vez que “o processo de inquérito serve para a investigação de factos determinados”, não se tratando de um procedimento “que conduza de per si, à aplicação de uma sanção pelo que não existe a exigência de audição dos visados”.

Só que, no caso em concreto, os responsáveis da escola foram afastados precisamente com base nesse  inquérito. É o que frisa o ex-subdirector José Fundo: “O Ministério da Educação conclui culpas graves a partir de um relatório proveniente de um único inspector e que nunca foi alvo de contraditório. Não existem provas do que foi firmado sobre os visados. Não existe acusação. As conclusões e acções do ministério foram precipitadas e provar-se-á que neste processo teve uma actuação que prejudicou uma escola e a carreira de dois docentes sem cumprir as normas mais básicas da justiça”.

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