António Zambujo e Miguel Araújo nos Coliseus: “São só 17 concertos”

Dois dos mais celebrados cantores e compositores do país sobem esta quarta-feira ao Coliseu dos Recreios. Será a primeira de umas inéditas dezassete datas, divididas entre o Coliseu lisboeta e o do Porto. "Como é que isto vos aconteceu?", perguntámos-lhes à mesa do almoço.

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Miguel Araújo e António Zambujo Miguel Manso

Nunca se viu nada assim. É certo que António Zambujo e Miguel Araújo são hoje dois dos músicos e compositores mais ouvidos do país. Dado o percurso em comum que foram construindo desde que, em 2000, se conheceram no Berimbar, em Lisboa, e que inclui agora troca de canções e a partilha do palco na banda Os Da Cidade, não foi surpreendente vê-los anunciar um concerto conjunto no Coliseu de Lisboa e no Porto. O que ninguém esperaria é que esta quarta-feira, quando subirem ao palco do Coliseu dos Recreios, se preparem para iniciar uma verdadeira maratona. Até 28 de Março, darão uns nunca vistos dezassete concertos nas duas históricas salas portuguesas.

Almoçámos no Bairro Alto com o maiato Miguel Araújo, que conhecemos nessa aventura ultra-pop chamada Os Azeitonas, antes de Os Maridos das Outras o transformar em fenómeno a solo, e com o bejense António Zambujo, homem que nasceu no fado antes de abrir asas para abarcar o Brasil e a canção só canção, sem género definido. Encontrámos dois músicos serenos. São só dezassete concertos. Depois deles, Zambujo terminará o álbum de versões de Chico Buarque, com participação do próprio, que grava neste momento no Brasil. Araújo finalizará o próximo single d’Os Azeitonas e continuará a compor canções. Entretanto, em conjunto, terminarão Margarida, canção a incluir no novo álbum do amigo Marante. Depois dos Coliseus, a vida continuará como sempre.

Chegámos por fim à semana em que se inicia esta maratona. Os ensaios estão a terminar, o palco quase a abrir-se para vocês. Já tiveram tempo para pensar como vos aconteceu isto de terem quase esgotados dezassete Coliseus? É um acontecimento inédito, quer com músicos portugueses, quer com estrangeiros.
António Zambujo (AZ) – Agora estamos mais descansados porque os bilhetes já estão comprados.

Miguel Araújo (MA) – A diferença [para a rotina de estrada habitual] é que são dezassete concertos no mesmo sítio e é assim que temos que pensar. Não vão ser as mesmas pessoas a ver todos os concertos, portanto, será como se dessemos um aqui [em Lisboa], outro em Famalicão, outro na zona centro, só que com tudo mais tranquilo por ser no mesmo sítio. Não temos que fazer sound-check todos os dias. Serem dezassete é fora de órbita, mas... Que dizes?

AZ – Os dezassete não dá para explicar, mas o nosso estado de espírito é o mesmo de sempre. Apesar das nossas diferenças, somos dois tipos bastante tranquilos. Ser em duas das principais salas de concertos em Portugal faz-nos sentir um pouco mais entusiasmados, mas nada de grandes ansiedades. Se me dissessem que tinha que fazer dezassete cirurgias seguidas, ficava nervoso porque seria a primeira vez. Agora, dezassete concertos? Vou fazer o que mais gosto.

O espectáculo é anunciado de uma forma muito simples: Duas vozes, duas guitarras. Será exactamente isso, uma partilha de canções, tão simplesmente?
AZ – É a música pela música, sem grandes invenções. O Miguel, que toca melhor do que eu e que toca mais instrumentos não vai tocar só guitarra acústica, mas também guitarra eléctrica, guitarra oitavada, piano, contrabaixo. Basicamente, tocamos as músicas como as fizemos, despidas dos arranjos.

MA – Eu sou um bocado exagerado e a certa altura, quando dou por ela, já estão trinta e tal músicos em palco. No dia a seguir ao meu concerto no Coliseu [em 2014], eu, a minha mulher e o Zambujo fomos almoçar e ela disse que achava que faziam falta concertos só de voz e guitarra. Estava a sugerir um concerto meu, mas o Zambujo aproveitou-se logo. ‘Vamos embora! Fazemos os dois só voz e guitarra’. O conceito é esse.

Certamente que não prepararam um alinhamento igual para todos os concertos.
MA – Para quem comprou bilhete para mais que um, era bem feito chegarem lá e verem o mesmo concerto, mas só temos alinhamento definido para o início e para o fim. O resto fica ao sabor do momento. Muito em aberto, como aliás sempre foi. Já demos alguns concertos deste género, só que ninguém reparou na altura. O último foi numa discoteca em Monte Gordo.

AZ – Não, o último foi no São Jorge, mas num contexto diferente.

MA – Esse surgiu quando já tínhamos pensado nos Coliseus. Por coincidência, os tipos que organizam o [festival] Grant’s True Tales convidaram-nos. Era para contar histórias, mas como a contar histórias somos um bocado miseráveis, decidimos levar as muletas e tocámos quatro ou cinco músicas. Tocámos uma música nova que ainda não sabíamos bem para onde é que ia, e a certa altura tivemos de ir buscar o resto da letra e o público delirou. Preparamos tudo muito bem, mas o pessoal delira é com essas coisas. Portanto, para não defraudar o nosso público também vamos ter momentos desses, alguns enganos. Vamos levar um iPadzinho para, nesses momentos, podermos ver as letras que não soubermos.

Quantas canções prepararam para os concertos?
AZ – As suficientes para uma hora e meia, duas horas de concerto. Mais que isso torna-se chato. Sou um fã incondicional do Leonard Cohen, mas quando vi um concerto dele de quatro horas apanhei das maiores secas. Na nossa música, as pessoas normalmente prestam atenção à letra. Seria impossível manter a concentração durante todo esse tempo.

MA – É como dizia o Lobo Antunes, o maior crítico é o banco do teatro, quando começa a doer o rabo.

O Leonard Cohen nos anos 70 tocava perante centenas de milhar no festival da Ilha de Wight. É curioso que agora, quando estamos rodeados de estímulos sonoros e visuais por todo o lado, a toda a hora, pareça haver entusiasmo e interesse no reencontro com esse despojamento.
AZ – Uma vez, em conversa com o [músico brasileiro] Rodrigo Amarante, ele disse-me que uma coisa que fazia nos espectáculos a solo dele, e que eu gosto muito de fazer também, é explorar os silêncios na música, os espaços, a respiração. Um concerto como estes que vamos fazer vai seguramente viver também disso. Tocar o menos possível para deixar esses espaços em aberto. Mas estamos numa fase em que há público para tudo. O Miguel faz parte dos Azeitonas, que são o contrário do que fazemos, e também são celebrados.

O Miguel Araújo disse recentemente numa entrevista que já não existem estrelas, tal como as conhecíamos no passado. Esgotar 17 Coliseus não é de estrela?
AZ – Para o público não é. Se fosse uma estrela daquelas como havia nos anos 1980 a esgotar dezassete Coliseus, seria falada para o resto da vida. Mas eu tenho a certeza que, um mês depois do nosso último concerto, ninguém se vai lembrar que fizemos dezassete Coliseus. A forma como as pessoas têm acesso à notícia hoje em dia faz com que o passado seja uma coisa imediata e inútil. Esta velocidade a que se vive é uma coisa que me incomoda um bocado e a que ainda não me adaptei. Mas é a realidade.

MA – O que quis dizer é que em Portugal, por exemplo, havia um canal e meio de televisão. Chegar ao mainstream era passar pelo buraco de uma agulha, mas qualquer pessoa que aí chegasse tornava-se incontornável e deixava de poder andar na rua. Hoje em dia, e ainda bem, podes ser o campeão do mundo, ter o reconhecimento e a consagração, mas não vais ser uma pessoa do mainstream. Porque ninguém é. O resultado é que podes ter sucesso, mas não tens fama, e isso é uma coisa óptima. Conheci o Rui Veloso numa feira do Minho e ele não andava um metro sem alguém o parar para tirar uma fotografia. Isso já não acontece com esta geração.

Apesar das diferenças enquanto compositores, há um ponto em que se tocam, o relevo que dão aos pequenos heróis anónimos do quotidiano e às coisas aparentemente insignificantes do dia-a-dia. Isso gera uma empatia com o ouvinte que, em parte, será também responsável pelo vosso sucesso.
AZ – É a técnica do escrever à janela. Mas não vamos estar com aquela história do humildezinho que eu detesto. Os portugueses só são bons se forem humildezinhos. É óbvio que temos mérito, que as pessoas gostam de nós e que querem ouvir a nossa música. Não vamos andar aqui a desculpar-nos. As pessoas gostam de nós e ponto final.

Mas é precisamente isso que vêem da janela todos os dias que mais vos inspira?
AZ – Hoje em dia estamos sempre à procura de um salvador. Andamos todos à procura de um Messias. Ou é o Obama ou é o Papa, ou é não sei quem, quando na verdade a responsabilidade de mudar isto é de todos. Se todos nós mudarmos o nosso cantinho, o mundo vai gradualmente ficando muito melhor. Nas músicas é a mesma coisa. Prefiro cantar aquilo com que me identifico.

MA – Comecei na música pelos instrumentos. Era baixista e não ligava às letras. O meu herói era o Flea [baixista dos Red Hot Chili Peppers], mas depois isso mudou. As minhas grandes influências musicais são amigos. O Fred [amigo de liceu, autor de Noite Apressada, do álbum Por Meu Cante, de Zambujo]  é que me mostrou coisas a que não prestava nenhuma atenção. Ele toca mal, mas pegava em dois acordes e fazia coisas incríveis. Foi aí que comecei a ligar mais às letras. Os meus grandes heróis nessa área são o Chico Buarque, o Carlos Tê ou o Bernie Taupin, do Elton John. No meu caso, trata-se de devoção a uma escola à qual eu adorava pertencer.

A capacidade de tornar universal uma experiência individual muito específica é a marca de uma grande canção?
AZ – Essa é a história dos grandes sucessos. Eu entendo que um hit se torne cansativo para algumas pessoas, porque passa a toda a hora na rádio, mas deixares de tocá-lo num concerto é quase insultuoso para quem está a ouvir. Nos concertos que fazemos ao ar livre no Verão, tenho a certeza que grande percentagem do público à frente ao palco está à espera do Pica do 7 e da Lambreta. Estão-se a cagar para as outras, mas através delas vão chegar às outras e vão ficar a saber quem eu sou.

Vocês conhecem bem os vossos ídolos. Conhecem as canções, as letras, o rosto. O que representa conhecer e gravar com Chico Buarque? Chega uma altura em que se separa o ídolo no pedestal daquele senhor simpático que tem à sua frente?
AZ – No caso do Chico, não, porque a personalidade dele não é de artista. É das pessoas mais incríveis que já conheci. A primeira vez que toquei no Rio de Janeiro conheci o Caetano Veloso. Foi ter comigo, deu-me os parabéns, tudo perfeitamente normal. A diferença é que com o Chico já fui jantar e beber copos e com o Caetano, não. Mas isso é uma questão de personalidades. Tenho um amigo que diz que somos da mesma enfermaria. Eu e o Chico provavelmente somos da mesma enfermaria e o Caetano não.

Neste álbum de versões do Chico que está a preparar no Brasil há um Chico específico, de um período específico, que esteja a abordar?
AZ – São músicas do repertório. Boa parte das músicas é sugestão dele. Músicas que ele gostava que eu cantasse. Outras foram escolhas minhas. Já gravámos o Joana Francesa juntos. O material vai desde o [álbum] Chico Buarque de Hollanda Volume 3, o Até pensei e o Sem fantasia, até ao último [Chico], de que vou gravar o Nina porque ele pediu. O disco tem uma base de voz e guitarra e, a partir daí, logo pensamos se colocamos mais coisas. Na Joana francesa decidimos convidar um acordeonista, mas vamos ver música a música, juntamente com o Marcelo Gonçalves, que é quem está a fazer a direcção musical.

O que pode nascer destes dezassete Coliseus? Um disco, uma nova banda, novas composições?

MA – Nada. Vamos gravar os concertos e, se ficarem bem, pode sair um disco. Se uma música ficar bem, pode sair um single. Já chegou a haver o projecto para um disco conjunto. Tínhamos um repertório de que gostávamos muito e que iria ser Os Da Cidade, mas ele dá 120 concertos por ano, eu o ano passado dei 90. E ele tem os Estados Unidos e o Brasil, eu tenho Santa Marta de Penaguião. Decidimos fazer partilhas. Ele ficou com O Pica do 7, eu fiquei com a Romaria [das Festas de Santa Eufémia]”. É a maneira de dar vida ao repertório, caso contrário ia ficar a ganhar pó.

Encerrado este capítulo, o que se segue para cada um individualmente?
AZ – A seguir aos últimos Coliseus iria para o Brasil acabar o disco, mas entretanto apareceu um concerto cá e só vou em Abril. Entre as duas fases dos Coliseus tenho uma tournée nos Estados Unidos. No último trimestre do ano será o lançamento [no Brasil] do disco [de versões de Chico Buarque]. Fazer discos e tocar. É a única coisa que sei fazer. Já pensei em cozinhar, mas como não o sei fazer, dá muito trabalho.

MA – Em Abril sai o novo single dos Azeitonas. Chama-se Cine Girassol e é a história de um senhor chamado António Feliciano que é o último dos projeccionistas ambulantes da Europa. O cinema que abriu em Odemira, o Cinema Girassol, fecha este ano porque ele vai reformar-se. Quanto ao resto, estou constantemente a fazer músicas. Mais que tocar e ser performer esse é o meu verdadeiro ofício. 

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