Nove das 25 mulheres mortas pelos companheiros em 2015 tinham apresentado queixa
Casos estavam em investigação ou tinham acabado de chegar ao Ministério Público. Pelo menos um processo foi arquivado por falta de provas. Noutros dois, a vítima pediu a suspensão do processo.
Das 25 mulheres que em 2015 foram assassinadas por maridos, amantes ou companheiros – ainda juntos ou já separados – nove tinham apresentado queixa junto das forças de segurança. As investigações que visavam o cônjuge ou ex-cônjuge que viria a ser o autor do homicídio estavam a decorrer (em cinco casos) ou tinham sido arquivadas (num caso) por insuficiência de provas.
Também foi solicitada a suspensão provisória do processo, por duas mulheres que viriam a ser assassinadas em 2015. Esses pedidos de suspensão são feitos para que, passado o prazo definido, o processo seja arquivado e o agressor fique livre da qualidade de arguido, se tiver cumprido as obrigações previstas, como, por exemplo, não ameaçar ou aproximar-se da vítima, ou se der prova de alteração do seu comportamento ou de cumprimento de um programa de tratamento.
Nas informações enviadas ao PÚBLICO pela Procuradoria-Geral da República (PGR), as datas, quando apresentadas, mostram que, nalguns casos, a queixa na PSP ou na GNR foi feita poucos dias – ou poucos meses – antes dos homicídios.
O caso mais extremo ocorreu no início do ano: uma mulher de 52 anos foi assassinada em Setúbal no mesmo dia em que fez a queixa. A denúncia que deu entrada nos serviços do Ministério Público no dia seguinte à sua morte – 22 de Janeiro – tinha sido apresentada na PSP horas antes do homicídio.
Num outro caso, em Ermesinde, a vítima apresentou uma queixa duas semanas antes de ser assassinada. Foi em Julho. Em Sacavém, em Dezembro, uma mulher foi morta pelo ex-companheiro, apenas uma semana depois dos factos que motivaram a queixa, também à PSP.
Para Daniel Cotrim, assessor técnico da direcção da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) para questões da Violência Doméstica, estes dados têm “pelo menos duas leituras”. A primeira: “A voz da mulher vítima de violência doméstica ainda tem dificuldade em ser ouvida pela Justiça, e isso está patente neste número de processos”, considera o psicólogo. A segunda: “As avaliações de risco [feitas pelas forças de segurança que recebem as queixas] têm de estar associadas à gestão do risco” em que as mulheres ficam expostas a partir do momento em que se dirigem a uma esquadra. “Gerir o risco é promover a protecção. Quando as pessoas apresentam queixa, imediatamente deviam ser referenciadas por uma organização de apoio à vítima que pudesse reforçar a sua protecção”, considera.
E insiste num aviso, várias vezes repetido: “O risco aumenta quando as mulheres apresentam queixa” e quando os suspeitos começam a ser notificados para interrogatório na PSP ou para depor em tribunal.
Nos primeiros dias de Agosto, no Bombarral, uma mulher de 51 anos apresentou queixa na GNR. Era submetida a agressões verbais e a pressão psicológica, antes de o companheiro passar à agressão física, o que motivou o fim da relação e a denúncia. Seis semanas passaram. O denunciado passou a arguido. Dois dias depois matou a mulher. A relação durava há um ano e meio, escreveu o Jornal das Caldas que noticiou em título Matou ex-companheira por vingança de queixa por violência doméstica.
Na maioria dos casos em que houve uma denúncia, pode haver alto risco, “mas esse risco não é gerido”, diz Daniel Cotrim. Ou seja: “Não são accionadas medidas de protecção imediatas nem há medidas de coacção aplicadas ao suspeito”.
Numa denúncia que indicia “alto risco” ou “situação urgente”, “as medidas de coacção do arguido ou as medidas de protecção da vítima devem ser aplicadas em 48 horas”. As medidas de protecção da vítima – como a tele-assistência ou vídeovigilância – dependem do consentimento do agressor.
O jurista e também assessor técnico da APAV, Frederico Moyano Marques, acrescenta que, quando o risco é elevado, “o órgão de polícia criminal [que recebe a denúncia] leva-a imediatamente ao conhecimento do Ministério Público (MP), no sentido de este promover junto do juiz de instrução criminal uma ou mais medidas de coacção”. Estas limitam os movimentos do agressor, com ou sem pulseira electrónica, impedindo-o de se aproximar da vítima, ou resultam, no limite, na medida mais gravosa, a prisão preventiva.
Depois das recentes alterações de 2015, a necessidade de acompanhar a denúncia dos resultados da avaliação de risco passou a estar prevista na lei. E isso é positivo, avalia Frederico Moyano Marques.
Por outro lado, as medidas de coacção são decididas por um juiz, na presença de provas, e os indícios nem sempre são entendidos como prova. “O testemunho da vítima não é suficiente”, diz Daniel Cotrim. E quando não existem marcas físicas ou depoimentos de testemunhas, não é possível obter prova. “Não se acredita logo na palavra da vítima” para aplicar as medidas de coacção, diz Daniel Cotrim.
Frederico Moyano Marques entende, por seu lado, que “em regra”, se a denúncia do órgão de polícia criminal segue para o MP acompanhada de uma avaliação de risco elevado, será porque esta já tem “associada situações de violência física”, com relatórios médicos, ou ameaças graves, quando há conhecimento de distúrbios, dependência de álcool ou de drogas, ou quando se comprova a posse de armas pelo cônjuge.
São as avaliações de risco que definem a urgência dos procedimentos judiciais ou a celeridade com que este deve correr, mas também a frequência e tipo de vigilância prestada pelas Equipas de Proximidade e Apoio à Vítima da PSP.
Pode haver situações em que o risco é tido como baixo, e o caso vir afinal a revelar-se urgente, como aconteceu com a mulher assassinada em Setúbal, em Janeiro. Foi morta depois de a sua denúncia ter recebido uma avaliação de “baixo risco”, recordam vários jornais.
“As avaliações de risco não são previsões certeiras. Não salvam vidas, nem podem ajudar a prevenir situações de maior violência ou de morte”, diz Daniel Cotrim. “É preciso trabalhar, com as vítimas, planos de protecção adequados para manter esta pessoa, de alguma forma, protegida por organismos públicos e privados”, como os centros de saúde ou os gabinetes de apoio.
“As redes de protecção especializadas existem, mas apenas nalguns pontos do país”, diz.“Muito tem sido feito”, reconhece, com a criação de gabinetes de apoio à vítima e de equipas ou redes móveis. A situação melhorou, por exemplo, em Lisboa, ou na cidade do Porto. “O que é preciso é estender [esses novos modelos] a outros sítios”, conclui.