Corpos para canhão

Albano Jerónimo é Valmont e Lígia Roque é Merteuil – desde ontem, os dois envelhecem à nossa frente dentro do bunker maligno onde Heiner Müller prolongou artificialmente a vida dos dois protagonistas de Ligações Perigosas. E onde o sexo faz apodrecer, como uma doença terminal.

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Lá fora, a chuva ácida, a nuvem atómica, a desolação irrevogável do mundo depois do fim do mundo – ou depois da Terceira Guerra Mundial, como Heiner Müller muito sumariamente indica na terceira linha de Quarteto.

Era assim que ia ser o futuro (um futuro terminal, à altura do presente histórico já não muito radioso da República Democrática Alemã circa 1980 a partir do qual o dramaturgo escreveu a maior parte da sua obra). E foi assim de facto o futuro que Heiner Müller deu a Valmont e Merteuil, as duas personagens do romance de Choderlos de Laclos cuja interacção epistolar põe em movimento a tão infernal quanto extraordinária máquina de desejo e de destruição de Ligações Perigosas (1782), trucidando vários corpos e várias almas pelo caminho. O dramaturgo alemão imaginou-os, malignos, a sobreviverem ao seu próprio apocalipse, entre mortos e feridos: Valmont e Merteuil 200 anos depois, num lugar entre o “salão antes da Revolução Francesa” e o “bunker depois da Terceira Guerra Mundial”, um lugar que torna profundamente visível outra desolação irrevogável, a do mundo depois do sexo.

Estão de facto mais velhos, Valmont e Merteuil – e Albano Jerónimo e Lígia Roque também. Aliás: envelhecem à nossa frente, literalmente, na encenação de Carlos Pimenta que ontem chegou ao Teatro Carlos Alberto, no Porto (a segunda a estrear-se este ano em Portugal, depois da que Jorge Silva Melo tem em cena no Teatro da Politécnica, em Lisboa, com Ivo Canelas e Crista Alfaiate). Mas mesmo com a desoladora vista que dali têm para a morte de tudo, mesmo com a desoladora vista que dali têm para os seus corpos daqui a 80 anos (um ecrã de cada lado do palco fá-los envelhecer em fast forward por interposto retrato, como o Dorian Gray de Oscar Wilde), Valmont e Merteuil jogam até ao fim o seu jogo de matar o tempo (eufemismo para: a grande manipulação).

É um jogo que exige “entrega total” – e que ele, Valmont/Albano Jerónimo, jogará sempre em erecção (aqui o sexo é uma doença terminal), atirando a matar até morrer envenenado para que a fulminante cabeleira ruiva de Merteuil/Lígia Roque possa finalmente reinar no seu salão onde um canapé do tempo em que a aristocracia ainda não tinha ido parar à guilhotina apodrece, com as entranhas à mostra, em cima de um chão de inox: “Estamos agora sós, cancro, meu amor”.

Lá fora, a chuva ácida, a nuvem atómica, o fim do mundo.

O tempo a passar
Heiner Müller preferiu “nunca” ler o livro de Laclos (“Quer dizer, li-o, mas só na diagonal. Se o tivesse lido em detalhe, teria perdido o impacto, a potência…”, explicou numa entrevista de 1988 que o programa do espectáculo reproduz), Carlos Pimenta quis rever o filme de Stephen Frears. As vezes suficientes, diz ao Ípsilon, para poder passar para lá das definitivas encarnações de Valmont (John Malkovich) e Merteuil (Glenn Close): “Via muito o Albano neste papel porque eu sabia que ele não ia fazer o Valmont do Malkovich – isso ser-lhe-ia demasiado fácil. E depois vi a Lígia aqui também, porque sempre quis uma Merteuil mais velha. No texto do Müller é claramente a mulher que manda, que organiza: ele é o falcão que ela envia à caça. Ainda que tenha a liberdade de escolher a sua presa.”

Mas as posições não são fixas no Quarteto de Heiner Müller. Homem e mulher, caçador e presa, senhor e servo trocam permanentemente de lugar, mais ainda do que trocavam no original de Laclos que, necrófago, o dramaturgo alemão vampirizou para em seguida – palavras suas – “cuspir as partículas vivas”. Vivos, ou mortos-vivos, Valmont e Merteuil também se alimentam dos seus cadáveres (Volanges, a rapariguinha do convento; Tourvel, a esposa fiel), que mesmo post-mortem (“sem o suor do medo, a respiração ofegante, o olhar esgazeado”), são carne para canhão dos cada vez mais solitários jogos deste salão em que duas pessoas se transformam em quatro (há que matar o tempo…).

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Quarteto é justamente o teatro do tempo a passar – e a passar por cima de duas pessoas, umas das quais terá de morrer para que a outra possa matar. Portanto binóculos, reclama Valmont, para “melhor ver o espectáculo” da morte de Merteuil (“Mandei instalar espelhos para poderdes morrer no plural”), que há-de ser na verdade o espectáculo da morte dele, erecção e tudo. O jogo é mesmo esse, de espelhos: ele a acabar como ela, ela a acabar como ele (ostensivamente: a última cena é a inversão da primeira).

Maneira de dizer que o fim estava lá desde o início? “É certamente o fim: não só da ideia da aristocracia, que a Revolução Francesa há-de aniquilar, como da própria civilização, porque a Terceira Guerra Mundial, a haver, será nuclear, e depois dela nada fica. Mas pelo menos o presente existe. De resto, não há esperança para os corpos: basta ver os vídeos para perceber como vão directos à cova”, diz Carlos Pimenta.

Enquanto o presente existe, esses “corpos que já perderam o desejo, e que já não suscitam desejo”, que não se reconhecem quando se vêem ao espelho, continuam a jogar o jogo de quebrar as regras do jogo. Todos os outros, conclui o encenador, são jogos viciados: “O texto tem um lado muito sadiano, no bom sentido da libertação anarquista. A Hannah Arendt e a Judith Butler falam nisso a propósito da abjecção no Sade: rebentar com as regras todas é a condição para que uma identidade possa surgir nos seus próprios termos. E para rebentar as regras todas é preciso ir ao limite – que aqui é mesmo o limite.”

Valmont morreu, Merteuil tem cancro, mas a Terceira Guerra Mundial ainda não começou – pelo menos oficialmente. Continuemos a jogar.

QUARTETO de Heiner Müller // promo from Alexandre Azinheira on Vimeo.

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