Da imensidão do western de Tarantino ao corpo moral de Vincent Lindon
Tarantino e Iñárritu filmam como se forjou um país: racismo, escravidão. Quando se diz que Gaspar Noé filmou um porno em 3D ele responde que filmou o amor - como catástrofe. Stéphane Brizé faz do corpo do seu actor, Vincent Lindon, um território moral. Vamos ver em 2016...
Os Oito Odiados, de Quentin Tarantino, O Renascido, de Alejandro González Iñárritu: parecem os tempos do western violentamente antimito, como esse estupendo A Noite Fez-se para Amar (Robert Altman, 1971), quando as paisagens geladas da América eram as portas do inferno. Tarantino chegava com a mãe à Califórnia, a terra do cinema, na ressaca do assassinato de JFK e com o país a caminho do Watergate. O género cinematográfico americano por excelência infligia a si próprio todas as crueldades ao contar como se forjara um país: vigilantismo, racismo, escravidão...
É essa a temperatura no início da rentrée. Neve e sangue, huis clos em 70 mm no caso de Os Oito Odiados, que estreia em Portugal a 4 de Fevereiro, travelogue no de Iñárritu, nas salas já no dia 21. Em ambos a fronteira do humano foi transposta. Os tempos do mainstream americano hoje não são os de continuadas e determinadas sevícias, contudo. Estes filmes são idiossincrasias dos seus realizadores. Tarantino progride com o que iniciara em Django Libertado (2012): a aproximação esplêndida ao fresco para dizer que o cinema é o seu país, o cinema é a sua História. Coloca o cinema americano dentro de um saloon, de facto, transformado em imenso espaço mental, ensopado de memória. A América continua dividida pela segregação.
Num momento em que vai falando num termo da sua carreira, dizendo que lhe faltam duas ou três coisas antes de se retirar, não passará despercebido que Os Oito Odiados tem de facto tonalidades de fecho, com o regresso às caras de Cães Danados, por exemplo, ao huis clos – sem desprimor para alguma melancolia, fá-lo até de forma auto-irónica, tal como Jennifer Jason Leigh, que no filme é violentada por todos os lados, se vinga alegremente dos seus inícios de carreira em que era sempre a vítima de serviço.
Com todo este movimento – sendo um filme que se passa em espaços fechados, como um “quem matou” à la Agatha Christie –, que é para o espectador uma intensa experiência de expansão, mais paralisado parece o filme de Iñárritu. Do primeiro ao último plano O Renascido insiste em demonstrar, antes do mais a proeza que coloca em acção, e não chega a lado algum, como um hamster na gaiola. É irónico que o mexicano seja hoje o darling dos Óscares e dos Globos de Ouro. Tarantino, esse, continua como começou: outsider. Se o que diz é verdade, não terá muitos mais filmes para mudar a situação.
Um dos dez melhores de 2010 para Tarantino foi Enter The Void, do franco-argentino Gaspar Noé, filme que, segundo ele, teve o melhor genérico do ano, talvez da década e se calhar um dos melhores de sempre. A esta escalada de Tarantino pela montanha do cinema, Noé responde com o que diz serem filmes em primeiro grau, não “filmes sobre filmes”. Falou nisto a propósito de Love, “filme sobre o estado amoroso”, segundo ele, que teve honras de estreia no Festival de Cannes como “o primeiro porno em 3D”, segundo eles.
Talvez valha a pena ultrapassar a barragem de classificações e penetrar mais fundo, por entre as infantis patifarias de Noé (como ejacular em 3D) mesmo que seja um statement a explicitar aquilo que segundo o realizador o cinema esquece sempre – o sexo como um dos momentos jubilatórios da experiência humana –, e deixarmo-nos inundar pelo apocalypse now sentimental. Love é a trip de uma memória, é uma voz a partir do desastre. É o “homem Noé”, criação a partir do próprio cineasta e das experiências de amigos e familiares. Gaspar espalha-se pelas personagens – os nomes; os posters nas paredes que correspondem aos seus filmes favoritos, Salò, Taxi Driver ... – numa exposição com tanto de ingénuo como de paródico. O “homem Noé”, tal como o conhecemos desde o tremendo Seul contre Tous (1998), é pusilânime, oportunista, frágil, xenófobo ... O “boneco” não é bonito. Agora dá pelo nome de Murphy, americano que dança o último tango em Paris e questiona o sentido da vida de braguilha aberta.
O casal como possibilidade de screwball comedy intelectual com guerra e sangue: assim era Comment je me suis disputé... (ma vie sexuelle), de Arnaud Desplechin (1996). Em Trois Souvenirs de Ma Jeunesse, apresentado na Quinzena dos Realizadores de Cannes, Desplechin regressa à juventude das suas personagens, facultando-lhes, com a “prequela”, a possibilidade de aventura que no filme de 1996 ia ficando sem hipóteses de respirar. Já um casal em silenciosa implosão vai ser visto em Love is Strange, de Ira Sachs, com John Lithgow e Alfred Molina – finalmente, o filme é de 2014.
Preparemo-nos, também, para o embate com uma das mais perenes mitologias do cinema: Andrei Tarkovsky. Ele e outros russos são clássicos a revisitar pelos ciclos - já clássicos - da Leopardo Filmes. E preparemo-nos para a potente sensualidade de Boi Neon, de Gabriel Mascaro, filme passado no ambiente dos rodeos do Nordeste brasileiro - um mundo em mutação, um mundo de possibilidades e a impossibilidade de aprisionar esse mundo.
Cannes 2015 continuará a desfilar em 2016: Dheepan, de Jacques Audiard (Palma de Ouro), The Assassin, de Hou Hsiao-hsien (prémio de melhor realizador), Cemetery of Splendour, de Apichatpong Weerasethakul, Taklub, de Brillante Mendoza, Mountains May Depart, de Jia Zhang-ke ou Son of Saul, de László Nemes: Grande Prémio em Cannes, é um filme sobre o quotidiano de um Sonderkommando em Auschwitz que não se permite infringir tabus de figuração, vigiando o seu voyeurismo, utilizando o virtuosismo técnico como defesa, forma de superação, e por isso é intimidante.
Mais frágil, mas não menos temerário, Valley of Love propõe a Depardieu e Huppert um reencontro no Vale da Morte ao fim de décadas (Loulou, de Pialat, é de 1980), para um exercício de despojamento. O corpo de Vincent Lindon continua a ser filmado de forma estarrecedora por Stéphane Brizé: o ritmo do actor, a respiração, as hesitações, as suas dificuldades com as palavras, geram o cinema. Depois de Mademoiselle Chambon (2009) e Quelques Heures de Printemps (2012), Brizé sai da crónica de sentimentos para o mundo do trabalho. E ao expor dessa forma a reserva do seu actor – que interpreta um desempregado que inicia os procedimentos para ser reintegrado – faz um comoventíssimo filme político. O corpo é uma moral, como era nos actores antigos. Vincent Lindon, sublime, é violentado num dos grandes filmes do ano.