Acordar e perguntar para o lado: “O que estou a fazer contigo?”
Os Platters cantam Smoke gets in your eyes mas é preciso dar atenção à letra: é canção de fim. 45 Anos é janela para a paisagem conjugal.
Andrew Haigh, 42 anos, cineasta britânico, começa a revelar-se um envolvente pintor de paisagens conjugais. Em Weekend (2011), longa-metragem anterior, e agora em 45 Anos, que se estreia esta quinta-feira, os casais estabilizam os seus equilíbrios no interior, mas as janelas mostram que uma verdade ecoará de forma profunda lá fora. O que se passa quando o exterior invade o interior? A revelação é silenciosa; as paisagens nestes filmes não dão outra hipótese.
Weekend e 45 Anos são quartos com vista para a intimidade. Um dos filmes pode ser visto como a sequela do outro. Ou a resposta a um “e se?” deixado em aberto em 2011. Naquele filme anterior havia um encontro num bar entre Russel (Tom Cullen) e Glen (Chris New). Os modos de vida eram diferentes, as crenças no modelo de casal tinham, em cada um, vibrações e intensidades que pareciam não se adequar – talvez irreconciliáveis. Mas era o facto de Glen estar de partida para a América que impedia o “engate” de se transformar na love story que o espectador queria que acontecesse e achava que conseguia avistar daqui. Haigh terminava o filme numa estação de comboios. Deixava ao espectador a tarefa de contemplar o que viria depois do The End. Ao mesmo tempo, dava um safanão no redondo boy meets boy como versão gay do redondo boy meets girl.
Weekend era uma forma delicada de frustrar expectativas – a personagem de Glen deveria, por isso, ficar contente com o filme, ele que se debate ao longo de Weekend contra a submissão de um imaginário gay a modelos dominantes. Não é abusivo pensar que, de forma igualmente silenciosa, Andrew Haigh falava do espectador de cinema e da sua condição de cineasta britânico face a uma tradição que foi sendo adocicada pelo filme de prestígio televisivo.
45 Anos coloca as mesmas perguntas e explicita algumas respostas. Em que é que daria o romance dos jovens Russel e Glen? O futuro deles poderia ser o presente dos septuagenários Kate (Charlotte Rampling) e Geoff Mercer (Tom Courtenay). Está pronta a playlist para a festa dos seus 45 anos de casamento, onde vai ser tocada Smoke gets in your eyes, pelos Platters, a canção com que se conheceram. Só que uma paisagem montanhosa do passado vai introduzir a vertigem dentro da cottage conjugal.
Mais de quatro décadas depois, o cadáver de uma antiga namorada de Geoff, Katya, que desaparecera num acidente nos Alpes, é encontrado. Kate pergunta a Geoff: “e se?”. O sótão de memórias vacila, desequilibra-se. O espectador consegue “ver” a intromissão de uma paisagem na outra. E há duelo pela sobrevivência que começa a tomar forma, em surdina: Kate e Geoff.
Se podemos perguntar aqui, como perguntávamos em Weekend, o que acontece depois do fim, o passado de Tom Courtenay e de Charlotte Rampling pode ajudar a responder: ele a extinguir-se aos poucos, a regressar mentalmente às suas montanhas (Courtenay foi sempre figura tocante de perda nos seus momentos icónicos da british new wave, em filmes de Tony Richardson ou John Schlesinger, por exemplo); ela como a feroz sobrevivente do costume – como em Sous le Sable, de François Ozon (2000), tem o rosto que merece (mais do que o de uma máscara mortuária, o de alguém que encontrou a sua ligação com a morte).
E Smoke gets in your eyes revela-se a canção que, afinal, sempre foi: canção sobre o fim.
O que se passa entre os interiores e exteriores, em Weekend (2011) e em 45 Anos, é semelhante, embora no primeiro caso os interiores sejam os de uma torre de apartamentos e no segundo os de uma cottage – e apesar de o meio social e a idade das personagens serem diferentes, também, de ser um casal gay num caso e um casal hetero no outro. Nos dois filmes, no silêncio e na horizontalidade da paisagem à volta ecoam o que se passa dentro das casas.
Uma das coisas que me interessou em Weekend foi uma dicotomia: quem somos em privado e quem somos quando estamos em público? Interessa-me muito a percepção das pessoas sobre a sua identidade. Quando fazemos um filme sobre vidas interiores, sobre emoções, temos de entender o contexto das coisas. A paisagem faz parte disso. Acredito que expressar o que se passa no exterior é uma forma de expressar o que se passa no interior. Conseguimos obter muita informação só por vermos Kate a caminhar. É a paisagem e como a enquadramos. Em Weekend, por exemplo, quando a personagem de Tom Cullen observa a de Chris New da janela da torre quando ele se vai embora, estamos a escolher uma perspectiva do mundo. É o que acontece com todas as personagens e é o que acontece connosco: somos atirados para o mundo e temos de escolher uma perspectiva para perceber o que nos está a acontecer.
Essa relação com a paisagem, e como ela fala, está também em alguns episódios que dirigiu da série Looking: recordo, por exemplo, um em que os protagonistas vão a uma festa numa floresta exuberante, que parece gritar por todos os lados.
Exactamente. Os meus filmes têm esse lado objectivo, de olhar para o mundo, mas ao mesmo tempo de expressar a vida interior da personagem. Cada decisão, a posição da câmara, o local de rodagem são formas de fazer os espectadores entenderem como as personagens sentem, quer seja uma festa em Looking, a aldeia de 45 Anos ou um bar em Weekend.
No caso desta paisagem, plana: é eco de infância, é ressonância biográfica?
Não. Eu queria que o presente do filme acontecesse numa paisagem plana, onde não se visse nada a não ser o horizonte, quase sempre a enorme distância, e o enorme céu - como se pesasse sobre o mundo, uma pressão sobre o mundo. É o peso do passado – em casa, quando Kate e Geoff estão lá, existe o sótão, lá fora o céu. Ao imaginarmos a história do passado, quando Geoff esteve na Suíça, podemos “ver” montanhas, lagos, natureza. Ou seja, também aqui pareceu-me acertada uma contraposição, explorar uma dicotomia, o passado como algo de apaixonante e o presente como a vida prosaica – porque as relações longas entram, a certa altura, numa espécie de ritmo próprio.
Weekend termina com um “e se?”: e se aquelas personagens não se separassem, e se elas se encontrassem mais tarde? Aqui também há um enorme: e se a personagem de Katya não tivesse morrido?
Adoro os “e se...?”. Olho para a minha vida e pergunto-me: “e se não tivesse feito isto?” As pessoas que encontramos mudam irreversivelmente as nossas vidas. E nunca percebemos isso, que a nossa vida está a ser mudada naquele momento em que conhecemos alguém num bar, em que, por essa razão, fazemos uma coisa específica no dia seguinte: de repente a nossa vida está mudada. Isso é tremendamente assustador: há escolhas, decisões mínimas que podem ter um efeito profundo. Para além disso, em termos cinematográficos sempre me interessam mais os filmes que acabam no “e se?”. Parece-me ser mais verdadeiro do que um princípio, meio e fim. Quero que as pessoas saiam do filme, gostando ou não, e voltem a pensar nele, no que vai acontecer à personagem, no que ela vai fazer depois da história. É uma esperança que tenho: que as pessoas se interessem pela história de forma mais envolvente do que a mera ida a uma sala de cinema.
De alguma forma 45 Anos responde ao "e se?" de Weekend: eis o que poderia acontecer aois dois amantes se tivessem continuado juntos até à velhice.
Sim, no outro dia encontrei Chris, que interpreta a personagem de Glen em Weekend, e ele disse, depois de ter visto 45 Anos: “Toda a gente queria uma sequela a Weekend, ela está aqui”. Sempre pensei que podia ser uma sequela, de facto, que um casal seria como o outro 45 anos depois. As relações são forjadas da mesma maneira no início. E tornamo-nos nessa relação. A forma como forjamos um dia regressa para nos assombrar.
A personagem de Kate está a ser destruída pelo que descobre. Mas parece-me que o que corre de mais profundo é a destruição da personagem de Geoff. Ela é uma sobrevivente – afinal trata-se de Charlotte Rampling, há ferocidade ali. Interpreto o fim, em que ela chora, como a conclusão de que o marido “morreu”, mesmo que ainda não fisicamente, e é com isso que ela vai viver... Várias cenas de 45 Anos falam-nos dessa morte, a cena de sexo, por exemplo.
Uma das razões por que quis Charlotte foi querer uma personagem com força, que lutasse, que lutasse por entender. O filme é tanto sobre um a mulher como sobre um homem que olha para trás, para a sua vida, para o seu passado, para pensar o que fez com a vida. “Será que amei aquela mulher”, Katya, “será que amo a mulher com quem estou agora?”, Kate, “porque me tornei fisicamente decrépito?”.
O final é aberto. O que acha que vai acontecer a Kate?
Acho que, o que quer que lhe aconteça, ela ficará bem. Pode deixá-lo, pode voltar a ele, ele pode morrer: o que quer que aconteça, acho que ela vai estar bem.
Geoff vai morrendo ao longo do filme, a decadência física...
Sim, acho que sim, é essa a luta dos homens quando envelhecem, perceberem que o que fez deles “homens” está a desaparecer, a paixão, a fúria, a virilidade, a capacidade de sexo – isso causa decepção.
Kate chega a uma série de conclusões, mas o que quer que conclua, ficará bem.
Quando se vê Tom Courtenay não se pode deixar de pensar em The Loneliness of the Long Distance Runner (Tony Richardson, 1962), quando se vê Charlotte não se pode deixar de pensar no seu passado. Isso ajuda 45 Anos. Porque é o passado que assombra a vida das personagens. Quando estão a recordar o passado, consigo imaginar os actores a fazê-lo, já não só as suas personagens – consigo imaginar Tom e um cigarro algures na Londres dos anos 60. Depois, há um contraste interessante entre esse volume de carreira, de património, e estar a ver esses actores a uma nova luz, iluminados por uma certa vulnerabilidade. Não são as mesmas personagens, mas estas personagens alimentam-se do passado.
Há uma playlist que a personagem de Charlotte prepara para a festa de aniversário, inclui Dusty Sprinfield, Marvin Gaye, Jackie Wilson e os Platters com Smoke Gets in Your Eyes. Foi você que escolheu esta playlist?
Sim, a música está apenas no argumento, no livro [de David Constantine] nem sequer há festa. As canções que tocamos nas nossas vidas definem a nossa vida. São como flashbacks, através delas vamos até ao nosso passado. Quando Kate e Geoff casaram, havia uma música de que gostavam muito, Smoke gets in your eyes, pelos Platters. Tocam de novo no aniversário mas ela toma um sentido diferente. Adoro a canção, mas é uma canção muito complicada: tem o sabor do romantismo mas...
“Tears I cannot hide/ So I smile and say/ When a lovely flame dies/ Smoke gets in your eyes”: é uma canção sobre o fim.
Exacto, se se ouve sem ligar à letra, é melancólica e gostamos imediatamente. Fazemos com ela o que fazemos com a nossa vida: não nos focamos muito naquilo que ela está a querer dizer. Quando o fazemos – quando nos focamos na letra da canção, quando nos focamos na nossa vida –, tudo se torna mais sombrio. As pessoas não querem fazer perguntas a si próprias. Ora, eu quero que as pessoas saiam do filme e ensaiem perguntas: “O que estou a fazer contigo? Será que ainda te amo?” Devíamos fazer essas perguntas todos os dias, acordar e perguntar para o lado: “Será que ainda quero estar contigo?”
Há um diálogo em Weekend, entre os dois amantes, sobre o formato das relações. Um deles acredita no casal, outro defende um formato novo, que quebre com as regras estabelecidas – que transcenda o modelo de uma conjugalidade hetero. Queria saber, de si, também sobre formatos. Trabalhou com a Merchant/Ivory Pproductions, uma interpretação particular do “filme inglês”. Ao ver Weekend lembrei-me do David Lean do Breve Encontro. A minha pergunta é, e pensando no dilema dos amantes de Weekend: que relação existe em 45 Anos com uma tradição do cinema britânico e que tradição é essa?
Quando penso no meu sentimento de ser inglês ou britânico, penso que talvez saiba o que é ser isso, mas tenho consciência de estar um pouco ao lado disso. Penso que 45 Anos e Weekend são estilisticamente britânicos por causa da luta interior que vai neles: ser britânico é uma coisa estranha, cheia de repressão. Os meus filmes não se lambuzam na beleza como os filmes de James Ivory...
Repressão, as personagens de Tom Courtenay em The Loneliness of the Long Distance Runner e em Billy Liar (John Schlesinger, 1963) a frustração...
Somos uma nação frustrada. Fomos uma nação forte, mas como indivíduos somos fracos. Sinto, definitivamente, que tenho uma versão da britishness como a desse cinema dos anos 60, mas algo deslocada. Somos feitos de tantas coisas, sou numa versão disso, não a versão completa.
Como confrontou isso na sua experiência americana? A série Looking tinha um lado de agenda gay, “tratar de assuntos”, que está ausente de Weekend.
Tem sido interessante, é um novo mundo, um novo mundo para trabalhar. Fazer televisão não é o mesmo que fazer cinema. Tem sido fascinante, e revelador. Senti a diferença entre ser britânico e americano, são formas diferentes de entender o mundo. Mas não deixa de ser interessante fazer para televisão e para uma audiência mais abrangente: a HBO é muito boa a permitir que continuemos a ser nós mesmos no processo. Há vários tipos de pressão: quando custa mais dinheiro, há mais pressão, e há mais pessoas envolvidas. É preciso abraçar isso tudo.
Tem 42 anos, escreve sobre personagens idosas. Como sabe delas?
Existe a percepção de que as pessoas com 70 anos pensam de forma fundamentalmente diferente das outras, das pessoas que têm 42 anos. Não é assim. Aquilo que sei sobre o que são as pessoas de 70 anos é baseado naquilo que sei dos meus avós. É claro que os nossos avós não são pessoas reais, são os nossos avós. Por isso escrevi sobre a minha perspectiva. Ao pensar nos meus anos de adolescência sei o que é recordar. Sei também o que é a preocupação com escolhas, sei o que é estar em relações complexas, sei o que é querer estabelecer ligações através do sexo, sei isso tudo. Imagino que aos 60 anos não sentirei as coisas de maneira diferente.
Imagino que é o mesmo tipo de resposta que dará se lhe perguntar sobre a sequência de sexo entre este casal idoso.
Quando vemos televisão pensamos que toda a gente tem um sexo incrível. O sexo não é uma performance, é uma tentativa de alguém chegar a outra pessoa. É vulnerabilidade, isso é o que me interessa, a intimidade e a ligação. Há uma cena de sexo em Looking e é similar, não é diferente. Há actores, quero que eles se sintam íntimos.
As cenas de sexo são sempre delicadas. Tentei filmar por ordem cronológica, a dança entre eles primeiro, depois a casa de banho, depois o sexo. Foi no mesmo dia, tudo. Para um actor fazer uma cena de sexo que seja apenas isso, sexo, deve ser horrível. Mas se é uma cena em que há vida emocional, eles entendem o que tem de se passar. Um realizador tem apenas de ser delicado: fechar o set, tentar acabar tudo em dez minutos, três takes, e a mesma posição de câmara.
Não conheço o suficiente do processo de interpretação para dar forma definitiva às palavras e às acções dos actores. Trata-se de encontrar com eles uma forma de indicar algo sobre as personagens, criar um ambiente que faça sentido, estar ali quando alguém cai. É um processo de colaboração, tentamos coisas diferentes. Por exemplo, fazer com que Charlotte tocasse em Tom de forma diferente...