Máquina de “morte natural” de Assad elimina milhares de prisioneiros
O regime de Assad, meticuloso e desconfiado, exige que se fotografe tudo, quando a polícia secreta mata ou deixa morrer nas prisões os detidos. César fugiu para a Europa com as provas.
Hamza tinha 13 anos quando foi levado. Era Abril de 2011 e a guerra na Síria estava ainda distante. Foi capturado quando protestava em Deraa, onde, seis semanas antes, o regime já espancara e arrancara as unhas dos adolescentes que escreveram “o povo quer a queda do regime” nas paredes da escola. Esteve desaparecido durante mais de um mês. Foi levado a casa dos pais no final de Maio, embrulhado em plástico. Estava púrpura, negro, inchado, esquartejado. Morto. A máquina de repressão engolira-o, cortara-lhe o pénis, golpeara-o, queimara-o, baleara-o.
Os agentes disseram aos pais de Hamza que não falassem da sua morte, mas um vídeo do cadáver chegou às redes sociais. Alimentou as primeiras sementes da revolta contra Bashar al-Assad e o pai do rapaz foi levado logo a seguir. “Hamza assustou-vos tanto assim?”, perguntavam cartazes nos subúrbios de Damasco, dias depois.
Milhares de pessoas morreram como Hamza às mãos da polícia secreta do regime desde que os protestos contra Assad começaram. Há dezenas de relatos sobre as torturas, abusos e privações nos edifícios das quatro agências da Mukhabarat, os serviços de informação do Estado. Em parte é esse o seu objectivo. O termo “polícia secreta”, aliás, é-lhes mal aplicado. Os mukhabarat fazem por ser vistos e é daí que vem parte do seu efeito. Como muito na vida pública na Síria, os agentes são um instrumento de estabilidade do regime. Pelo seu poder e autonomia, mas também pela aparente omnipresença.
Jonathan Panther descrevia a Mukhabarat em 2011, para o Wall Street Journal. Fê-lo desde a praça principal de Alepo, que mais tarde se transformaria em ruínas. Na altura estava pejada de letreiros de adoração a Assad. “Por entre o culto de personalidade, passeiam-se para trás e para a frente os mukhabarat nos seus cabedais. Os mesmos homens de negro, passeando todo o dia, sem fazerem muito em carrinhas brancas de caixa aberta. Observar é apenas metade do seu trabalho. O resto é pura intimidação. Os cidadãos olham de relance para cartazes do seu ditador, olham para baixo, para os homens em cabedal negro, e percebem que não há espaço para o diálogo.”
A máquina securitária na Síria foi quase uma abstracção no Ocidente até Janeiro de 2014. Nesse momento, a oposição no exílio revelou que um ex-militar da Divisão Criminal Forense do Exército transferira perto de 29 mil fotografias de cadáveres de prisioneiros do regime. Contaram-se 6786 pessoas diferentes, quase todas marcadas pela tortura, fome e maus-tratos. O fotógrafo ficou conhecido pelo nome de código César. As suas imagens tornaram-se as provas mais substanciais e exaustivas dos crimes cometidos pelos mukhabarat de Assad.
A veracidade dos documentos, fotografias e identidade de César foi entretanto comprovada por entidades com interesses próprios na guerra, mas também por jornalistas, como Garance le Caisne e Adam Ciralsky. E, agora, pela Human Rights Watch.
O regime tentou descredibilizar as imagens de César – surgiram nem um ano depois do mortífero ataque com gás nos subúrbios de Damasco, que quase precipitou uma intervenção militar ocidental na Síria. O ex-militar foi acusado de se manter na sombra, de estar a ser financiado pelos mesmos países do Golfo que apoiam a oposição. Ele repetiu que temia pela sua família, não conseguiu fugir – está agora exilado num país europeu. Assad garantiu que algumas imagens vinham do Iraque e do Iémen. Enumerou as suas reservas à revista Foreign Affairs em Janeiro ano: “Quem disse que isto foi feito pelo Governo, e não pelos rebeldes? Quem disse que é uma vítima síria, e não outra pessoa?”
Trabalho meticuloso
O departamento de César era meticuloso. Antes dos primeiros protestos, os fotógrafos eram chamados ocasionalmente para recolher imagens de corpos em cenas de crime, acidentes ou suicídios. Apareciam, fotografavam e voltavam ao edifício do Ministério da Defesa, onde arquivavam os documentos. Com os primeiros protestos, começaram a ser chamados diariamente para fotografarem cadáveres de presos enviados para o hospital militar de Tishren. Ocupavam-se só de Damasco, onde a Human Rights Watch contou dez edifícios de detenção, já há três anos.
César não viu as vítimas de todos os locais de detenção na capital, muito menos dos outros 17 edifícios conhecidos por todo o país e dos espaços improvisados que abriam e fechavam à medida que a guerra avançava.
Os corpos têm sinais evidentes de abusos. Contusões, ossos partidos, cortes, crânios escancarados, baleados. Muitos têm a cara encovada da fome, as costelas e a pélvis saliente. Os cadáveres surgem com as inscrições que se usavam para os identificar. Às vezes eram-lhes coladas à testa, com fita-cola. Noutras, porque caíam, alguém segurava um papel com os dados diante da câmara. Por vezes, era o próprio médico legista que acompanhava o fotógrafo e que invariavelmente concluía que as causas de morte se deviam a uma de duas razões: ataque cardíaco ou problemas respiratórios.
Os mortos eram marcados com três grupos de números: o primeiro identificava o departamento e ramo da Mukhabarat que detivera o indivíduo; o segundo marcava o número do preso e o último era-lhe dado pelo médico legista. Como num dos casos antes da guerra, César e os colegas regressavam ao seu escritório e arquivavam as fotografias, apesar de muitas desmentirem a causa da morte registada. O rasto do regime está documentado por sua própria vontade.
Pouco tempo depois, César deixou de fotografar em Tishren. Passou a fazê-lo no mais espaçoso hospital-militar de Mezeh, junto à colina onde se situa o palácio presidencial. Algumas imagens mostram dezenas de cadáveres no chão da garagem do hospital, onde eram largados quando as arcas frigoríficas e corredores da morgue estavam cheios.
O ex-militar começou a trabalhar mais horas por dia e a arquivar casos em massa das “mortes naturais” nos edifícios do regime. Homens novos, na sua maioria, mas também crianças, pelo menos uma mulher e idosos. Alguns seriam activistas antigovernamentais, mas outros, como explica Adam Ciralsky na Vanity Fair, eram só pessoas capturadas em pontos de controlo de estrada, ou indivíduos que de alguma maneira inspiravam desconfiança ao regime. Acabaram mortos pela tortura e maus-tratos, falta de cuidados médicos, fome ou más condições nos presídios.
Alguns ex-prisioneiros descrevem dias inteiros passados com cadáveres em celas húmidas, sujas, sem circulação de ar e de tal maneira sobrelotadas que mal havia espaço para alguém se mover. Nas palavras de um sobrevivente à Human Rights Watch, sobre um companheiro: “Ma’moun morreu em Dezembro de 2013 de diarreia. Teve-a durante cinco meses. Não pedimos que um médico o visse porque se o fizéssemos os guardas iriam espancar-nos. Quando pedimos ao guarda que levasse o seu corpo, começaram a bater-nos na cabeça”.
Mukhabarat e o regime
César repetiu uma interrogação comum sobre o seu caso à jornalista Garance le Caisne, autora de um livro publicado em França sobre a sua fuga. “Por que é que o regime guarda estas fotografias? Perguntei-me várias vezes. Porquê guardar as descrições detalhadas dos corpos e manter as fotografias em arquivo? Sou um homem simples, não um político, e vou dar uma resposta simples: as agências de informação não colaboram.” É uma explicação razoável.
Há quatro agências da Mukhabarat, com actividades que se sobrepõem e sem qualquer mecanismo de supervisão civil. O pai de Bashar, Hafez, dependia muito delas e, por isso, fez com que as agências se vigiassem entre elas, alimentassem um clima de concorrência e não comunicassem entre si. Já no seu Governo de três décadas se haviam tornado comuns os “desaparecimentos forçados” de pessoas incómodas. Embora não tantas como agora.
As quatro agências pertencem a instituições diferentes – umas civis, outras do exército –, mas, na prática, são todas comandadas pelo Presidente. A sua grande força, porém, vem de terem liberdade para agirem a sós. Isto permitiu que se enquistassem em praticamente todas as áreas da vida pública. Quase nenhuma actividade profissional, aliás, está isenta de passar por alguma forma de autorização de um dos quatro ramos da polícia secreta. Isto acentuou-se com a chegada de Bashar ao poder, em 2000. A figura do Presidente perdeu muito peso e as instituições passaram a ter mais autonomia. A repressão ficou em piloto automático.
Hoje, é comum que uma agência capture uma pessoa e, passadas algumas semanas, a liberte apenas para ela ser novamente detida por uma das outras três agências que não soube da primeira detenção. Tudo acaba registado. “Para garantir às autoridades que as execuções foram concretizadas; para assegurar que ninguém foi impropriamente demitido do seu cargo; e para que os juízes possam dizer às famílias que os seus familiares morreram de causas naturais”, explica à Vanity Fair David Crane, um dos ex-procuradores que analisou o caso de César e o entrevistou, através de uma empresa britânica contratada pelo Qatar.
Morte súbita sem cabeça
As certidões de óbito chegam a uma minoria das famílias, muitas vezes após semanas de insistência e pagamento de subornos. Têm pouca ou nenhuma validade.
Abu Odeh – não é o seu nome verdadeiro – foi médico nos primeiros tempos de guerra em Tishren e em Harasta, outro hospital militar na capital onde iam parar detidos feridos ou mortos. Cuidava de combatentes da oposição de noite e de militares do regime de dia. Dá à Vanity Fair a versão do médico a quem eram pedidas as certidões de óbito falsas para os detidos. “Quase todos os dias, os mukhabarat chegavam de carro com corpos lá dentro. Ia ter com eles e encontrava um cadáver no banco de trás. Conseguem imaginar? Mesmo que o morto não tivesse cabeça, o [agente] exigia que registasse uma “morte súbita”. Essa era a escolha preferida. Apesar de ter visto ferimentos que iam de, bem, decapitações a choques eléctricos, esfaqueamentos e vestígios deixados por ligaduras em volta do pescoço.”
Desconhece-se o verdadeiro número de prisioneiros que morreram às mãos dos mukhabarat. Em meados de 2015, o Centro para a Documentação das Violações na Síria documentava pouco mais de 7500 mortos. A Rede Síria para os Direitos Humanos, que entrevistou César e estudou as práticas das polícias secretas, dizia em Junho que contava mais de 11.300 mortes e que as valas comuns onde eram enterrados estavam a ser aumentadas.
Toda a gente
Ainda menos famílias sabem do momento em que os seus parentes são detidos do que as que sabem da sua morte. Em parte porque fazer perguntas ao regime pode ser quase tão perigoso como a oposição directa. Um dos familiares dos 27 casos analisados pela Human Rights Watch só se apercebeu da morte do seu irmão quando viu a sua fotografia nos arquivos da oposição, emagrecido ao extremo. Tinha perguntado por ele durante sete meses. Ao fim desse tempo, foi mandado parar por um mukhabarat à saída do trabalho. “Se continuares a perguntar pelos teus irmãos, vamos cortar-te a língua.” Fugiu nesse mesmo dia da Síria.
A revolta que fez de Hamza um mártir de 13 anos na luta contra o regime acabou distorcida pelas atrocidades cometidas por todos os lados da guerra civil. Não só pelos grupos jihadistas como o Estado Islâmico, mas também pelos próprios rebeldes alegadamente moderados, como o Exército Livre da Síria, que ajudou César a fugir da Síria. As Nações Unidas dizem ter nomes de responsáveis por crimes de guerra de praticamente todas as facções que lutam na guerra.
Do lado do regime, que gradualmente ganha pé na diplomacia internacional, os mukhabarat não desaparecerão. A sua rede de contactos é praticamente insondável e a guerra só a tornou maior. Há quatro milhões de sírios deslocados no seu próprio país. Muitos não têm emprego, terrenos ou outra forma de ganhar dinheiro a não ser a de informar os agentes de Assad. “Temos tudo sob controlo”, dizia um agente à revista Foreign Policy, em Novembro deste ano. “Hoje, toda a gente se tornou mukhabarat.”