“O primeiro partido da França tornou-se um embaraço à esquerda como à direita”
Jacques Rupnik, que estudou profundamente os nacionalismos e os populismos na Europa de Leste, olha agora para a realidade francesa como um alerta muito sério sobre o futuro da Europa.
A Europa está suspensa do que vai acontecer hoje na segunda volta das eleições regionais francesas. Na primeira, a Frente Nacional ganhou o estatuto de “primeiro partido de França”. A segunda será um indicador importante para o que pode acontecer nas presidenciais de 2017. Jacques Rupnik, professor em Sciences Po, Paris, que estudou profundamente os nacionalismos e os populismos na Europa de Leste, olha agora para a realidade francesa como um alerta muito sério sobre o futuro da Europa, e que vai mudar a paisagem política de França. A questão dos refugiados e a incapacidade europeia para lidar com ela está na raiz do que aconteceu em França, mas também em muitos outros países europeus. A excepção é a Alemanha, que devia pensar europeu e não apenas alemão.
A primeira volta das eleições em França serve para medir os partidos a nível nacional. Marine Le Pen pode reclamar-se de liderar o primeiro partido de França? Ou as coisas não são bem assim?
Pode dizê-lo. Em valores absolutos, teve 28 por cento dos votos, ou seja, um por cento mais do que a direita moderada. Mas, apesar disso, é preciso não esquecer que é uma eleição particular, regional, em que muitos eleitores ou não lhe dão grande importância (metade dos eleitores absteve-se), ou consideram que é possível um voto de contestação, o que provavelmente não fariam numa eleição presidencial. Mas isso não nos deve impedir de perceber que se trata de um aviso, que já sentíamos chegar em eleições anteriores, municipais e europeias. É um aviso que obriga toda agente, sobretudo os dois grandes partidos estabelecidos, a posicionar-se relativamente a esta nova situação e adaptar a sua estratégia. É esse o grande dilema, não apenas para a segunda volta [das regionais], mas para o tempo que aí vem e que nos vai levar a 2017 e às eleições presidenciais e legislativas. O score de Marine Le Pen nestas eleições já é entendido como uma espécie de primeira etapa para as eleições seguintes, o que vai, aliás, influenciar o voto na segunda volta. Já não chega dizer que são eleições secundárias, porque a segunda volta já é vista como o prelúdio das eleições futuras.
A vitória da FN quer dizer que Le Pen foi quem beneficiou mais com o terrorismo e com os refugiados?
Essa é a questão fundamental. O contexto em que decorrem estas eleições é marcado por tendências a mais longo prazo, mas também por aquilo que aconteceu este ano: uma vaga migratória na Europa sem precedentes e os atentados terroristas de 13 de Novembro, em Paris. Basta olhar diariamente para os jornais televisivos, com uma multidão imensa a dirigir-se para as fronteiras da Europa, para que as pessoas se lembrem de que é esse o pesadelo que a Frente Nacional anuncia há muito tempo na sua propaganda. A imigração como invasão. Há naturalmente diferentes tipos de imagens. Há as que suscitam a compaixão, como a criança na praia, e há as que suscitam outras emoções e, em primeiro lugar, o medo. A Frente Nacional nem precisou de fazer propaganda, limitou-se a dizer: “Nós avisamos”. E, para ela, quem é responsável por tudo isto? É a Europa, porque abolimos as fronteiras entre nós, e agora Angela Merkel decidiu que mesmo a fronteira exterior da Europa deixou de existir. Os gregos, primeiro, e depois a chanceler decidiram abolir Schengen e abolir também Dublin [a política de asilo da UE]. Estamos, portanto, na política da emoção, na política do medo, que apenas pode beneficiar a Frente Nacional. Além disso, o que estava já a acontecer em Agosto e Setembro foi dramatizado pelos atentados de Paris e a descoberta de que dois dos seus autores tinham vindo através da vaga de imigrantes. Vimos agora que que o principal organizador dos atentados foi buscá-los a Budapeste de carro e que fez a viagem duas vezes. Isso alimenta a relação estabelecida pela Frente Nacional: imigração igual a insegurança que, por sua vez, pode levar ao terrorismo. E o que é responsável por tudo isto? A abolição das fronteiras. E quem é responsável pela abolição das fronteiras? Os dois grandes partidos, com as suas elites europeístas do centro-direita e do centro-esquerda que fazem parte do sistema europeu, sendo portanto a Europa a principal responsável.
Mas isso também quer dizer que os grandes partidos do sistema não conseguiram contrariar esse discurso, porque não têm resposta para as pessoas.
Isso também é claro. É o outro grande tema utilizado pela Frente Nacional e que explica, em parte, os resultados destas eleições. O que ela diz é que os dois partidos atacam-se um ao outro mas jogam os ambos o mesmo jogo: a mesma política, determinada pela União Europeia, pelos mercados internacionais, pela Banca e pela Alemanha. Daí o slogan UMPS [a União do Movimento Popular, hoje Os Republicanos, mais o Partido Socialista]. Para muita gente é um discurso que faz sentido, porque vêem a França mergulhar na crise, sobretudo com um elevado desemprego, e não vêem qualquer diferença nos resultados. Os governos mudam mas os problemas económicos e sociais são os mesmos. Outros países da Europa conseguiram recuperar melhor, por exemplo, a Espanha ou a Grã-Bretanha, enquanto nós continuamos com um desemprego muito elevado, que aumentou em 700 mil no governo de François Hollande. Há aqui muito descontentamento e muita decepção do eleitorado popular, que permite à FN ser o maior partido da França porque se tornou no maior partido operário de França. O PS é visto como um partido de funcionários públicos, de professores, que representam uma clientela política muito diferente. O PS tem-se mostrado incapaz de resolver a questão social, preferindo as questões societais: o modo de vida, uma visão mais liberal do casamento entre homossexuais, o aborto, a igualdade de género, a defesa do voto dos imigrantes e coisas assim, mas que se dirigem apenas a um eleitorado de classe média, sem conseguir suscitar o menor interesse no eleitorado popular. Não foi por acaso que Marine Le Pen escolheu candidatar-se no Norte, uma velha região industrial, e a sua sobrinha [Marion Maréchal-Le Pen] se candidatou no Sul, a região em que a hostilidade aos imigrantes de origem árabe é mais forte.
Os Republicanos de Sarkozy também tiveram um mau resultado, que está a criar divisões profundas. Há o risco de se partirem?
Sim. Eles vão dividir-se com este resultado que os coloca um ponto abaixo da FN. É já o prelúdio da batalha para as presidenciais e, em primeiro lugar, para as primárias. Os adversários de Sarkozy, sobretudo [o seu antigo primeiro-ministro] François Fillon e Alain Juppé [antigo primeiro-ministro de Chirac] vieram logo a público mostrar as suas diferenças, dando a entender que é a liderança de Sarkozy que justifica os maus resultados. Eles pensam já na eleição presidencial e no desafio da segunda volta. É fácil de compreender que, se chegarmos a uma segunda volta com Marine Le Pen – um cenário muito, muito provável –, não é indiferente saber quem terá ela pela frente. E como a esquerda está bastante mal, é provável que seja um candidato da direita. É aí que passa a ser importante saber qual. Os eleitores de esquerda aceitariam melhor um candidato moderado, como Alain Juppé, do que Sarkozy, que é uma espécie de “bête noir” da esquerda. É tão adorado pelos militantes do partido, como é detestado pelo eleitorado moderado. Pode ganhar as primárias se, por exemplo, elas não juntarem mais do que 70 ou 80 mil participantes. Mas, se mobilizarem meio milhão de pessoas, então Juppé terá mais chances.
Sarkozy vai manter a sua estratégia de 2007, que é roubar eleitorado à FN com um discurso radical. O PS, com Manuel Valls, tenta integrar na sua agenda política as questões que a FN levanta. Vai haver mudanças na cena política?
Creio que a entrada em cena da FN muda a paisagem política. Tínhamos um jogo político com dois actores principais e com um escrutínio maioritário a duas voltas que reforça a bipolarização. A escolha era simples. Agora, a chegada do terceiro actor, com a possibilidade de Marine Le Pen se manter na segunda volta [das presidenciais] em quase todos as cenários, o jogo passou a ser triangular. A questão é saber a quem aproveita o crime. Em termos gerais, na esquerda há ideia de que a FN realiza duas funções. Um realinhamento identitário, quando já não há programas económicos distintos ou grandes visões do futuro, restando apenas o antifascismo. Mas há também a ideia de que uma FN a crescer rouba votos principalmente à direita e que, por isso mesmo, a FN seria hoje para a direita o que o Partido Comunista foi noutros tempos, nos anos 50 e 60, para a esquerda. O PCF tinha uma votação importante e isso impedia o centro-esquerda de ganhar eleições. Creio que Mitterrand foi o primeiro a experimentar esta lógica, dando espaço à FN para enfraquecer a direita, ao instaurar o voto proporcional em 1986.
Mas corrigiu o tiro rapidamente.
É verdade, mas permitiu pela primeira vez à Frente Nacional emergir politicamente. Foi um erro moral e político. Voltamos à mesma questão: a quem favorece o crime? É o debate que estamos a ter hoje sobre as desistências e a necessidade de criar ou não uma frente republicana contra a Frente Nacional. O PS escolheu a desistência em três regiões, mas não em todas. É uma resposta ambígua. Sarkozy prefere o “nem, nem“, recusando as desistências com dois argumentos. Primeiro, não se pode diabolizar a FN nem, muito menos, os seus eleitores: declarar a unidade nacional face à iminência do fascismo seria uma forma de diabolizar o eleitorado que poderia radicalizar-se ainda mais. Ou seja, a diabolização acabou. Em segundo lugar, se a FN diz que o PS e os Republicanos são a mesma coisa, então fazer uma frente unidade contra a FN seria a demonstração desta tese e, provavelmente, não impediria a FN de ganhar, alimentando ainda mais o discurso populista do “povo contra as elites” que são “todas iguais”, que confiscam o poder, rejeitando o maior partido da França. A questão seria diferente se se tratasse das presidenciais. É este o estado do debate. O primeiro partido de França tornou-se um embaraço à esquerda como à direita.
À esquerda qual é a argumentação?
Curiosamente, Sarkozy é visto como o adversário ideal para François Hollande. Se Sarkozy for o candidato da direita e se se mantiver o nível de eleitores moderados alérgicos ao anterior Presidente, mais o terrorismo e a crise internacional que permitiu a Hollande desempenhar o papel de líder, mascarando as suas fraquezas, então poderia sonhar com o milagre de conseguir chegar à segunda volta para enfrentar Marine Le Pen, contando com o eleitorado moderado. Com Juppé seria muito mais difícil.
Para a Europa o resultado da FN foi um choque, até porque, sem a França, não há Europa e o populismo está a alastrar por toda a parte. Isso quer dizer que a Europa deixou de ter capacidade para responder aos problemas dos europeus?
A Europa está numa encruzilhada. É ameaçada pelo crescimento do populismo e do nacionalismo. Se fosse o problema de um só país, poderíamos dizer que era lamentável mas não seria grave. Mas hoje o fenómeno atravessa toda a Europa. Há partidos populistas e nacionalista que já estão no governo, como é o caso da Hungria e, agora, da Polónia. Na Suécia, por exemplo, uma sondagem recente atribui o primeiro lugar a um partido de extrema-direita, justamente na sequência da entrada maciça de refugiados. Um referendo dinamarquês, há quinze dias, rejeitou mais integração europeia, nomeadamente em matéria de Justiça e Assuntos Internos. É uma realidade que hoje observamos em quase toda a parte, mesmo que menos no Sul. Em Espanha ou na Grécia há partidos que podemos qualificar de populismo de esquerda, que contestam a política económica europeia.
Mas não ainda na Alemanha.
Sim. Na Alemanha não há nada disto. E a Alemanha, com todo o seu poder, tornou-se ao mesmo tempo uma excepção. O problema é que Merkel não levou isto em conta, ao tomar algumas decisões. A Alemanha está em acelerado declínio demográfico, com as previsões a dizerem que, se tudo continuar na mesma, em 20 anos a população alemã seria inferior ou igual à da França. Tem uma economia que funciona bem, virada para as exportações, com uma enorme necessidade de mão-de-obra. Basta constatar que os principais apoiantes da abertura à imigração não são apenas as ONG, são também os patrões, que já quantificaram essas necessidades para os próximos tempos: cerca de 250 mil por ano. Finalmente, a Alemanha é governada por uma “grande coligação” entre os dois maiores partidos e, mesmo assim, não há o equivalente da FN. O Pegida é um epifenómeno do Leste e a Alternativa para a Alemanha continua com uma fraca implantação. A Alemanha está numa situação excepcional, que não se pode comparar com muitos outros países da União Europeia. Em alguns aspectos, até pode ser uma excepção louvável, só que isso depende do ponto de vista. É detestada na Europa de Leste, por exemplo, que a responsabilizam pela vaga de refugiados que os atingiu e que quer agora impor quotas. O problema é que a Alemanha, com as suas excepções, devia pensar europeu quando toma as suas decisões. Mas a chanceler pensa que é europeia porque é forte.
Mas hoje, a chanceler também está a ser contestada internamente.
A Alemanha espera que, até ao final do ano, o número de refugiados atinja um milhão de pessoas. Sim, a sua demografia precisa; sim, a economia precisa; e sim, é um acto humanitário, mas que tem de ter limites. Para concluir, a Europa precisa de encontra muito rapidamente uma solução para as suas fronteiras e para o direito de asilo – Schengen e Dublin. Não podemos fazer implodir Schengen e Dublin, como aconteceu no Verão, sem os substituir por outra coisa. Quando falei do fenómeno da FN como a política do medo, se nos dizem que não temos fronteiras entre os nossos Estados e que não temos fronteiras exteriores devidamente controladas, eu direi que é uma situação muito perigosa.
Para a Europa e não apenas para a França?
Durante cinquenta anos, a Europa representou a paz, a segurança, a confiança. Era uma espécie de garantia para todos. Hoje, para muitos cidadãos, por mais que os desprezemos ou ignoremos ou lamentemos, ela suscita medo e passou a representar uma forma de insegurança. É uma constatação triste, para quem é europeísta. Precisamos de um Schengen II, de um Dublin II para mostrar que estamos preparados para decidir e também para termos os meios financeiros para que isto funcione. Se não dermos respostas no curto prazo, a questão migratória vai envenenar a vida política e não apenas em França. Toda a política europeia vai ser afectada e as coisas podem tomar uma proporção incontrolável, com toda a gente a pedir opt-outs, e não apenas os britânicos. A Europa começará então a desintegrar-se.