A quinta avenida do século XVI ficava em Lisboa

Dois quadros descobertos em 2009 originaram um livro sobre Lisboa quinhentista e a Rua Nova dos Mercadores. Naquela artéria confluíam produtos do império e gentes de todo o mundo, transformando a capital portuguesa numa cidade global.

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As duas pinturas encontradas numa mansão inglesa revelam o quotidiano de Lisboa, a capital de um império durante os Descobrimentos Sociedade de Antiquários de Londres
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As duas pinturas encontradas numa mansão inglesa revelam o quotidiano de Lisboa, a capital de um império durante os Descobrimentos Sociedade de Antiquários de Londres

No século XVI, a Rua Nova dos Mercadores era uma pequena babel. Nos seus edifícios, moravam italianos, flamengos, andaluzes, portugueses. Enquanto isso, naquela rua da Baixa de Lisboa, cristãos-novos, judeus estrangeiros, escravos vindos de 20 nações africanas, escravos árabes passeavam-se, muitos faziam trocas comerciais. É esta a realidade trazida à superfície no livro recentemente editado no Reino Unido The global city. On the streets of the renaissance Lisbon (A Cidade Global – Nas Ruas da Lisboa Renascentista), editado pelas historiadoras Annemarie Jordan Gschwend, do Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar, a trabalhar na Suíça, e Kate Lowe, da Universidade Queen Mary de Londres.

A obra tem como ponto de partida dois quadros descobertos em 2009, numa mansão inglesa, em Oxfordshire, datados entre a década de 1570 e 1620 por Annemarie Jordan Gschwend e Kate Lowe. Foram pintados por um artista holandês anónimo. Nas duas pinturas, estamos perante mais de uma centena de figuras humanas, que conversam, montam a cavalo, numa rua com uma fileira de edifícios em segundo plano. Há homens, mulheres, negros, brancos, cavalos, movimento e vestimentas apropriadas ao Outono ou ao Inverno.

Quando viram os quadros – que se pensa serem duas telas cortadas a partir de uma única pintura –, as historiadoras rapidamente determinaram que estavam perante a Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa. É a partir desta malha visual que o livro é construído, indo buscar documentação oficial, testemunhos da época e objectos que sobreviveram até hoje para falar sobre a cidade global que Lisboa era no século XVI, as suas gentes, a sua cultura material em capítulos escritos por investigadores diferentes.

“É uma vista estranha, que nos mostra uma rua da qual nós realmente não conhecemos nada. Lisboa foi perdida em 1755. Foi como se tivesse caído uma bomba nuclear”, diz Annemarie Jordan Gschwend ao PÚBLICO, no início de Dezembro, quando esteve em Lisboa na apresentação do livro no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA).

“Para mim, o que é interessante é a vida na rua. Lisboa tinha uma grande população negra. E o quadro não mostra apenas a população negra, mostra também os estrangeiros que ajudaram Lisboa a tornar-se a grande cidade comercial que era no século XVI. Os quadros também mostram animais. Há um cão que está a abocanhar uma ave. E é um peru. É uma ave que veio da América e que os portugueses tornaram numa ave global, levando-a para a Índia e para outras partes do mundo.”

Esta é apenas uma das imagens simbólicas encontradas entre os pormenores das pinturas. Para um especialista, há muita informação nos quadros sobre aquela cidade agora distante de nós, quando Portugal tinha um império construído durante os Descobrimentos, e um comércio único vindo do Oriente, de África e da América, passava obrigatoriamente por Lisboa. As interacções comerciais, a escravatura, o percurso dos produtos dentro da cidade para o rio Tejo, as relações entre portugueses e estrangeiros ou a arquitectura da rua são questões que podem começar a ser descortinadas a partir do que se vê naquelas duas telas, que funcionam como um díptico. 

“Os quadros são espantosos, mas também enigmáticos”, disse Henrique Leitão, historiador de ciência e Prémio Pessoa 2014, que fez a apresentação do livro no MNAA. “São completamente diferentes de todas as outras representações de Lisboa que dispomos, que, com pouquíssimas excepções, são vistas distantes e panorâmicas, a partir de um ponto de vista afastado.”

Mas os quadros da Rua Nova dos Mercadores não. “Tal como o quadro do Chafariz d’el Rey [de autor anónimo, datado entre 1570 e 1580, exposto no Centro Cultural de Belém], as pinturas representam uma cena viva e intensa que arrasta irreprimivelmente o observador para dentro dela. É impossível olhar para estes quadros sem que imediatamente se forme na mente uma torrente imensa de perguntas”, prosseguiu, enunciando-as: “Que rua é esta? Que cidade é esta? Que casas são estas? Mas, acima de tudo, quem é esta gente? E o que é que eles estão a fazer?”

A Rua Nova dos Mercadores ficava atrás do que hoje é o Terreiro do Paço, entre o início da Rua do Ouro e da dos Fanqueiros, e onde hoje é sensivelmente a Rua do Comércio. O que se vê no díptico é a fileira de edifícios que estão do lado do Tejo. Por isso, atrás destes prédios estaria na altura a Rua da Confeitaria e, mais atrás, o Terreiro do Paço e o rio Tejo. No extremo esquerdo da primeira pintura nestas páginas vê-se ainda o largo do Pelourinho o Velho.

A rua media 286 metros de comprimento e 8,8 metros de largura. “Aproximadamente, 45 edifícios estavam distribuídos de cada lado. A maioria dos edifícios tinham uma ocupação múltipla, consistindo de três, cinco e seis andares”, lê-se num dos capítulos do livro, assinado por Annemarie Jordan Gschwend, que reconstitui a vida daquela rua. 

A cerca de ferro que se observa na pintura dá nome à Rua Nova dos Ferros, que é a parte oriental da Rua Nova dos Mercadores. Era dentro desta cerca que os comerciantes, lojistas e banqueiros tinham um espaço semiprivado para conduzirem os negócios. “O artista mostra a sua percepção da interacção social que testemunhou na Rua Nova – a concentração de mercadores ricos vestidos ao estilo espanhol, com capas pretas na moda, dentro da cerca de ferro e separados dos habitantes menos afortunados, que ficam fora desta fronteira”, explica o livro.

Era no rés-do-chão dos edifícios que estava uma multitude de lojas. Em 1552, existiam 11 livrarias, onde também se encontravam livros de matemática, e 20 lojas de roupa e têxteis, onde se vendiam tecidos de veludo, sedas, tecido adamascado, tafetás vindos da Europa, da Índia e do Extremo Oriente. Em 1581, um ano após o início da dinastia filipina, existiam seis lojas especializadas na venda de porcelana Ming chinesa, nove boticas – as “farmácias” que na altura vendiam “produtos medicinais”, alguns importados da Ásia, como pedras bezoares, que se formam no sistema digestivo dos ruminantes, ou cornos de rinoceronte – além de artesãos, como alfaiates, calceteiros, barreteiros ou sirgueiros.

Era esta a dinâmica de uma cidade vibrante que estava a receber os frutos da rede comercial que tinha sido criada (só entre 1500 e 1521, o rei D. Manuel I enviou 237 naus para a Índia) e da crescente população cada vez mais misturada. De 1551 há um testemunho de que 10% dos 100.000 lisboetas eram negros. Dezassete anos depois, Lisboa tinha 150.000 habitantes, onde as minorias mais representadas eram escravos negros e índios. Em 1578, cerca de 20% dos 250.000 habitantes eram negros.

“Os quadros confirmam que Lisboa era muito misturada racialmente, que havia gente de muitos povos, muitos negros, que havia produtos exóticos”, diz Henrique Leitão ao PÚBLICO, acrescentando que uma das surpresas do livro provém da informação sobre o que existia dentro de algumas das casas da Rua Nova dos Mercadores. “[Os investigadores para este livro] descobriram documentação fantástica. Sobretudo inventários pessoais. E isto é muito importante, porque ficamos a ver o que é que as pessoas tinham mesmo dentro de casa. A grande surpresa é que estavam cheias de produtos exóticos. Dantes pensávamos que os produtos exóticos eram a marca de gente muito rica. Mas acabámos por ver que eram banalíssimos. A louça chinesa estava por todo o lado, os tecidos indianos estavam por todo o lado.”

Pela documentação, sabe-se hoje que era permitido aos comandantes e aos marinheiros das naus trazerem o chamado “comércio miúdo” nas suas viagens à Índia, podendo fazer um pouco dinheiro. Esta invasão de bens vindos do Oriente é ainda demonstrada pelo historiador de arte Hugo Miguel Crespo, do Centro de História da Universidade de Lisboa, que, no capítulo sobre o recheio dos interiores das casas da Rua Nova dos Mercadores, nota que clientes ricos como Teodósio I, duque de Bragança, adquiriam muitos mais produtos de luxo europeus, que eram mais raros, do que produtos asiáticos.

Mas toda esta riqueza também transparece nos edifícios que se observam no díptico. Os sucessivos reis, começando com D. João II, foram financiando obras para alterar aquela famosa rua. “D. Manuel I tentou construir uma cidade mais regular. Por isso, ordenou que os balcões de madeira medievais fossem retirados. A rua passou a ser mais larga e foi pavimentada. Era uma rua que estava a tentar passar uma mensagem. Tinha apoio real e civil. Era importante que Lisboa tivesse uma rua comercial. Trazia dinheiro, impostos, comércio”, explica Annemarie Jordan Gschwend.

Depois, a história seguiu em frente: a dinastia filipina retirou alguma importância a Lisboa, as rotas comerciais alteraram-se e o terramoto de 1755 mudou para sempre a cartografia da cidade. “O Marquês de Pombal construiu tudo do zero e impôs uma nova ordem arquitectónica”, explica a historiadora, acrescentando que a Rua Nova dos Mercadores foi “substituída” por outras ruas com comércio. Desses tempos, ficaram documentos, objectos e este díptico da rua que era a “Quinta Avenida do seu tempo”, considera Annemarie Jordan Gschwend. E que agora é uma rara memória visual daquela Lisboa global.     

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