Palácio da Ajuda - por uma restauração digna
Que se rompa com a tradição (maldição) da Casa, mas sem transformar o remate numa obra de regime ou de legislatura. São 250 anos de História que é preciso dignificar.
Ao princípio, logo depois da Real Barraca a que uma candeia mal apagada deu sumiço, em finais do século XVIII, e salva que foi apenas a Torre do Galo (cujos sinos não cantam vai para 30-40 anos?), ainda se chegou a colocar a 1.ª pedra (fomos sempre assim) ao projecto barroco de Caetano de Sousa, para logo o substituírem em 1802 (hoje chamar-se-iam “alterações durante a obra”) por um outro de índole neoclássica e matriz italiana, dos arquitectos Francisco Fabri e José da Costa e Silva, construindo-se então o novo palácio sobre as fundações já erigidas pelo colega de gosto precedente.
Contudo, novamente à boa maneira portuguesa, a empreitada haveria de correr mal, por culpa da cíclica crise financeira e política do país, também aí de co-responsabilidade externa devido à montagem da corte no Brasil e às Invasões Francesas, embora Junot, ao que parece, tenha feito questão das obras do palácio nunca pararem enquanto por cá estivesse. Seja como for, a demora foi muita, tanta que por alturas da aclamação de D. Miguel I, em 1828, apenas as alas nascente e Sul eram habitáveis. Veio a Guerra Civil, veio o Liberalismo, e com ele a certeza de que o Palácio da Ajuda, por ter sido pensado para um outro tipo de monarquia, não podia ser terminado conforme ao projecto original, ficando por construir as partes central e poente daquele que pretendia ser um palácio à europeia, grandioso e a perder de vista.
Assim, o que existia apenas podia completado na medida das reais possibilidades do reino e das parcas cerimónias oficiais a que ficara reduzido. Pior, esses acabamentos não poderiam vir a ombrear jamais com a decoração do palácio já erguido, em que tantos e tão ilustres artistas tinham trabalhado algumas décadas atrás – Machado de Castro, Foschini, Domingos Sequeira, etc. Seria, assim, um palácio descompensado, arquitectónica e artisticamente falando.
E descompensado continuou durante a entrada em cena de D. Luís I e D. Maria Pia, que ali se refugiaram da “maldição” das Necessidades, onde D. Pedro V sucumbira à tifoide pouco tempo antes. Ainda assim, em 1862, o Palácio da Ajuda passaria, finalmente, a paço real na verdadeira acepção do termo, a casa de família, decorado e mobilado ao gosto, vontade e sentido da utilidade prática da Princesa de Sabóia, que aliás marcará de forma indelével o (bom) gosto oficial do reino. Contudo, o palácio continuava por rematar.
E assim continuou I República adentro, por maioria de razão, até que durante o Estado Novo, se convidou o Arq. Raul Lino a dá-lo por findo, tendo feito para tal um estudo (1936) e dois projectos (1944 e 1956), todos para inglês ver, mais uma vez, e infelizmente, porque talvez tenha sido o seu último o melhor putativo remate que alguma vez se desenhou para o palácio.
Desde então, passaram-se um sem-número de vicissitudes e peripécias avulsas, que incluíram um incêndio (Setembro de 1974), que destruiu a Galeria de Pintura do Rei D. Luís e parte significativa da ala Norte, o que propiciaria a que mais tarde se desenvolvesse uma campanha de obras profundas de remodelação (alterações) naquela parte do palácio, para a instalação de vários serviços públicos (hoje é MC e parte da DGPC), e um rol interminável de trabalhos de final de curso e de estudos-prévios e respectivos projectos de arquitectura, de forma quase frenética, licenciatura após licenciatura, legislatura após legislatura.
Neste frémito se inclui um Plano de Salvaguarda (1987), que meteu permuta de terrenos e um remate tão grandioso quanto asséptico, da autoria do Arq. Gonçalo Byrne, um outro projecto “oferecido”, em que se pretendia transformar a fachada poente numa imensa instalação-vitral pop, capaz de competir, certamente, com as novas igrejas do Restelo, até, mais recentemente, um novel remate de produção caseira, tão minimalista quanto amarquisado, a pagar com os milhões provenientes do roubo das jóias da coroa!
Antes que seja tarde, portanto, é chegada a hora de voltar à estaca zero, e recomeçar todo o processo mas com cabeça, tronco e membros, e lançar mão de uma peça fundamental chamada: debate nacional. O Palácio Nacional da Ajuda merece um processo participativo, em que não se ceda a lóbis, e por ele se tome conhecimento de todas as opções de remate gizadas ao longo dos anos, é não mais que isso que se espera das entidades oficiais, desde logo que AR seja parte interessada também nestas coisas. Que se se pronunciem historiadores, arquitectos, paisagistas, patrimonialistas, tutti quanti, sobre qual o tipo de solução se pretende para rematar aquele que é o nosso mais importante palácio: solução clássica? Solução de rotura? Digna? Às três pancadas? Uma solução tão consensual quanto possível. A partir daí é decidir-se em conformidade, quiçá, por um concurso público (internacional), e fazerem-se à obra.
Que se rompa com a tradição (maldição) da Casa, mas sem transformar o remate numa obra de regime ou de legislatura. São 250 anos de História que é preciso dignificar.
Fundador do Fórum Cidadania Lx