Ordem dos Advogados denuncia "violência gratuita e falta de assistência médica" nas prisões
Penalistas, magistrados, académicos, responsáveis e funcionários das cadeias portuguesas reúnem-se durante dois dias para debater o sistema prisional, a execução de penas e os direitos dos reclusos. Encontro é promovido pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados.
A realidade vivida na maioria das 49 cadeias portuguesas inclui “maus tratos, violência gratuita, alimentação e higiene insuficientes e de repugnante qualidade, falta de assistência médica e de medicamentos, falta de convívio familiar e íntimo”. O retrato, descrito por Eldad Mário Neto, que preside à Comissão dos Direitos Humanos (CDH) da Ordem dos Advogados (OA), é feito com base nas queixas recebidas por esta comissão e “insistentemente denunciadas” por todas as associações de defesa dos presos. A situação impõe “uma atitude de frontal denúncia”, defendeu o responsável, na abertura, esta quinta-feira, das Jornadas sobre o Sistema Prisional, que terminam esta sexta-feira.
Nas primeiras intervenções deste encontro, foi evocado o papel do legislador e dos magistrados, para combater “as degradantes condições” em que vivem homens e mulheres presos, nas palavras de Eldad Mário Neto, não podendo a situação da população prisional continuar ser tratada – como o tem sido – de forma distinta da dos outros cidadãos. Presentes estavam, entre outros, o vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura, o juiz conselheiro António Joaquim Piçarra, o vice-presidente da Assembleia da República Jorge Lacão, e o director-nacional da Polícia Judiciária, José de Almeida Rodrigues.
Parte da solução para o problema da sobrelotação passaria por substituir, quando possível, as penas de prisão a penas cumpridas no domicílio, com recurso a vigilância electrónica, defendeu o director-geral da Reinserção e dos Serviços Prisionais, Rui Sá Gomes. A contribuir para a sobrelotação das prisões estará também o que o professor e vice-reitor da Universidade Lusófona Carlos Alberto Poiares considerou ser o excesso de prisão preventiva. O académico lembrou que 16,2% dos reclusos cumprem prisão preventiva, podendo vir depois a ser absolvidos, sendo, apesar disso, vítimas da “estigmatização” subjacente à permanência na prisão.
Paulo Sá e Cunha, presidente da direcção da Associação dos Advogados Penalistas, salientou as restrições “em matéria de concessão de liberdades condicionais” como um dos aspectos a merecer reflexão. Para o advogado de defesa do antigo provedor-adjunto da Casa Pia Manuel Abrantes, “a única coisa que deve condicionar uma liberdade condicional é saber se a pessoa está apta a voltar à sua vida normal ou se existe perigo”.
Regra geral, referiu ao PÚBLICO, não é apenas isso que condiciona a decisão: “A cultura que ainda impera nos nossos juízes é uma cultura conservadora” que mais facilmente concede a liberdade condicional a um condenado que assume a culpa. Esse enfoque dado ao arrependimento “já é valorizado na fase da aplicação da pena” não devendo ser de novo invocado quando a liberdade condicional pode ser concedida, ao fim de cumpridos dois terços da pena, defendeu o penalista.
Medo, estigma e exclusão
“Uma significativa parte da nossa população prisional está arredada das mais elementares exigências compatíveis com a dignidade da pessoa”, considerou Eldad Mário Neto. O presidente da CDH da Ordem dos Advogados apontou “a surdez do Ministério da Justiça e do Ministério das Finanças” do Governo que agora cessa funções e manifestou esperança de que o novo Governo e, em particular, a nova ministra da Justiça, “sejam sensíveis” a estes problemas. “A situação também tem que ser revertida por vontade política e por vontade técnica”, concordou o académico Carlos Alberto Poiares. “Nas cadeias estão os mais pobres, aqueles para quem a vida não tem horizontes, para quem a crise não é temporária, é permanente. Por isso, os presos têm recidivas.”
No encontro organizado pela vice-presidente da CDH da OA, Helena Tomás, falou-se na importância do papel dos directores dos estabelecimentos prisionais, na falta de recursos e de perspectivas de vida para os reclusos que, depois da cumprida a pena, enfrentam o medo, o estigma e a exclusão na sociedade. “Em 90% das situações, as pessoas estão presas porque estão desinseridas ou excluídas e saem [da cadeia] ainda mais desinseridas e excluídas”, expôs Carlos Alberto Poiares.
Entre “os sucessos e os insucessos da reinserção social de pessoas que estiverem privadas de liberdade”, o director-geral da Reinserção e dos Serviços Prisionais Rui Sá Gomes optou por salientar as experiências “positivas”, embora admitindo que “as carências do sistema” são “nalguns casos graves”. O responsável deu exemplos, como a contratação pela Fundação da Mata do Buçaco de ex-reclusos, entretanto em liberdade, que aí começaram a trabalhar na limpeza da mata quando ainda estavam presos, ou a tendência positiva embora “ainda insuficiente” no número de reclusos com Plano Individual de Reabilitação: de 577 em 2007 passaram a ser 6500 em 2014, de um total de cerca de 14 mil pessoas a cumprir penas privativas de liberdade.