Atingidas pelo terror, Rússia e França atacam Raqqa e ensaiam coordenação militar
Aviões franceses e mísseis de cruzeiro russos visaram bastiões do Estado Islâmico. Em Paris, Kerry afirmou que cooperação com Moscovo depende de avanços no processo de transição política na Síria.
Intensificar e coordenar. As duas palavras repetem-se na boca dos dirigentes que prometem retaliar “sem piedade” contra os ataques reivindicados pelo Estado Islâmico – os de sexta-feira em Paris que fizeram 129 mortos e também, confirma agora Moscovo, o derrube do avião russo que se despenhou na Península do Sinai, matando 224 pessoas. A ameaça concretiza-se, para já, em Raqqa, a cidade a que os jihadistas chamam capital, bombardeada repetidas vezes nas últimas horas pelas forças da Rússia e da França, países que dizem agora querer cooperar na luta contra o inimigo comum.
Pela segunda noite consecutiva, os Mirage descolaram segunda-feira à noite da Jordânia e os Rafale voaram das suas bases nos Emirados Árabes Unidos para atacar de novo um centro de comando e de treino dos jihadistas naquela cidade do Nordeste da Síria. As 16 bombas largadas “atingiram e destruíram em simultâneo” os alvos que o comandante da operação militar francesa disse estarem a ser vigiados “há várias semanas”, em colaboração com os militares norte-americanos. “Estamos agora a intensificar a nossa luta, nos últimos dias estamos a atacar, mas este é um trabalho que está a ser feito há meses”, garantiu à AFP o contra-almirante Antoine Beaussant, que coordena a ofensiva francesa na Síria e no Iraque.
Os militares franceses e depois os americanos revelaram que também a aviação russa estava a “atacar em força” o bastião dos jihadistas – uma informação que o Kremlin confirmou durante a tarde, horas depois de os serviços secretos russos terem anunciado que “uma bomba artesanal” explodiu a bordo do avião da companhia Metrojet que se despenhou a 31 de Outubro.
Durante uma visita ao Ministério da Defesa, o Presidente Vladimir Putin foi informado, perante as câmaras de televisão, que as forças russas estavam já a cumprir as suas ordens para intensificar o combate aos jihadistas, tendo disparado 34 mísseis de cruzeiro e usado bombardeiros de longo alcance para atacar a organização, em Raqqa, mas também Alepo e Idlib (Norte). A missão russa, que nos 48 dias que já leva de operações na Síria efectuou 2300 saídas, vai ser reforçada com 37 novos aviões, que se somam às 50 aeronaves já destacadas para o país.
“O trabalho da nossa força aérea na Síria não pode simplesmente ser continuado. Tem de ser intensificado, de forma a que os criminosos compreendam que a vingança é inevitável”, disse Putin pela manhã, depois de ouvir o director do FSB, Alexander Bornikov, confirmar que a tese de atentado que até agora o Kremlin não tinha reconhecido.
Moscovo não adiantou muitos detalhes sobre os bombardeamentos. Mas um responsável militar francês adiantou ao Le Monde que os mísseis de cruzeiro terão sido disparados por navios estacionados no mar Cáspio e que, pela primeira vez desde o início da intervenção, os projécteis russos sobrevoaram o espaço aéreo da Turquia. O país é um dos principais apoiantes da oposição síria e foi um dos que mais acusaram Moscovo de estar a intervir no país vizinho, não para combater o terrorismo, mas para apoiar o Presidente Bashar al-Assad, seu aliado.
Russos avisaram americanos
Num outro sinal de que os atentados de Paris e do Sinai mudaram alguma coisa nas estratégias militares dos países que estão em guerra com o Estado Islâmico, um responsável norte-americano revelou que os militares russos preveniram o comando americano no Qatar antes de lançar esta nova vaga de ataques. O responsável sublinhou, no entanto, que Washington e Moscovo ainda não estão a coordenar as respectivas operações. Os bombardeamentos russos “não afectam as operações da coligação e não anulámos as nossas missões por causa deles”, explicou a mesma fonte, a coberto de anonimato.
A coordenação entre as duas potências militares – que pela primeira vez desde a II Guerra Mundial intervêm em simultâneo no mesmo palco de guerra – não é impossível, disse o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, mas exige que sejam feitos progressos na frente diplomática, aquela em que raramente foi possível encontrar pontos de consenso nos quatro anos e meio que já leva a guerra na Síria.
“De momento, [a coordenação com a Rússia] é apenas uma questão de garantir que estamos a atingir os alvos certos e que não corremos qualquer risco de entrar em confronto”, disse Kerry, que foi a Paris dar corpo à solidariedade americana com França. “Mas é possível que, se o processo político avançar mais rapidamente, possa haver um maior nível de troca de informações”, acrescentou Kerry, colocando sobre os ombros da Rússia e do Irão, os dois principais aliados de Assad, a missão de convencer o regime sírio a aceitar o roteiro de transição acordado no último fim-de-semana em Viena – um cessar-fogo, seguido de negociações a começar no início de Janeiro, da formação de um governo de transição no prazo de seis meses, culminando na aprovação de uma nova Constituição e na realização de eleições dentro de um ano e meio.
“Quanto mais depressa a Rússia e o Irão derem vida a este processo, mais depressa a violência irá diminuir e mais depressa poderemos isolar o Daesh [acrónimo árabe para o Estado Islâmico] e a Frente al-Nusra [o braço da Al-Qaeda na Síria]”, sublinhou o chefe da diplomacia americana, acrescentando que as negociações internacionais na capital austríaca criaram um cenário que, “em teoria”, abre caminho a “uma grande transição política na Síria” no prazo “não de alguns meses, mas de semanas”.
"Aliados franceses"
Mas se a cooperação entre americanos e russos se limita, para já, aos protocolos de segurança acordados em Outubro, os contactos estão mais avançados entre Putin e o Presidente francês, François Hollande, que segunda-feira defendeu a união de todos os que lutam contra os jihadistas e que na próxima semana visitará Washington e Moscovo com vista à formação de uma “grande e única” coligação militar. O Kremlin revelou que os dois chefes de Estado falaram nesta terça-feira ao telefone, tendo chegado a acordo para uma “coordenação de esforços”.
Paris sublinha que não está a coordenar as suas operações militares com Moscovo – divididos na estratégia política para a Síria, os dois países mantêm as divergências sobre o âmbito da ofensiva –, mas Putin deu ordens à Marinha russa para que entre em “contacto directo” com a força naval que a França encaminhou para o Mediterrâneo, tratando-a como um aliado. “Precisamos de criar um plano com eles para acções aéreas e marítimas conjuntas”, disse Putin.
O Governo francês recebeu também nesta terça-feira um sinal de compromisso dos seus parceiros da União Europeia, que aprovaram por unanimidade o seu pedido de assistência militar – uma “cláusula de solidariedade” inscrita no Tratado de Lisboa e que nunca antes tinha sido invocada. Além de um “acto político de grande significado”, a decisão permite a Paris solicitar aos europeus contribuições para a missão na Síria, explicou ministro da Defesa, Jean-Yves Le Drian. Contribuições, adiantou à AFP um assessor, que “podem tomar a forma de aviões de transporte, abastecimento ou de armamento”.
Nenhum outro país europeu acompanhou a França quando, em Setembro, Hollande decidiu juntar-se aos Estados Unidos e aos países árabes que bombardeiam o Estado Islâmico na Síria. Mas o primeiro-ministro britânico, David Cameron, assegurou nesta terça-feira que não desistiu ainda de convencer o Parlamento britânico a seguir-lhe o exemplo, autorizando os aviões a cruzarem a fronteira entre a Síria e o Iraque, onde atacam o Estado Islâmico desde 2014. “O nosso país enfrenta uma ameaça directa e crescente”, afirmou Cameron no Parlamento. “Não podemos, não devemos esperar que os outros assumam a responsabilidade e os riscos de nos proteger.”