Cat Power entre os sobreviventes
Em Portugal para dois concertos a solo, traz consigo não apenas o reportório que fez dela uma diva da música alternativa, mas também uma rainha dos excluídos e dos sobreviventes.
Nem sempre por sua responsabilidade, mas as passagens de Cat Power pelos palcos portugueses vêm sempre acompanhadas de uma enorme incógnita e tangenciam com frequência o épico e o trágico. Desde a já mítica alunagem (é pouco credível que a sua cabeça estivesse em qualquer paradeiro terrestre) da cantora no Blá Blá, em Matosinhos, em 2003, quando 20 minutos chegaram para um concerto-desastre, quando as canções andaram à luta com o álcool e ambos tombaram por KO, à mais recente apresentação frustrada do álbum Sun no festival SBSR 2014, em que foi forçada a actuar tardiamente e com um alinhamento reduzido de forma drástica devido aos efeitos de uma chuva torrencial que lançou o caos na programação do Meco.
Com Cat Power nunca se sabe bem o que esperar. Mas esse inesperado faz parte de um charme involuntário. Chan Marshall é uma espécie de íman que atrai situações limite ou que – também é uma hipótese – tem a capacidade de transformar qualquer acontecimento num relato tão dramático quanto delirante. Tomemos Sun por exemplo. O seu último álbum, lançado em 2012, nasceu de uma reacção atarantada à resposta que teve da sua editora às primeiras maquetas que apresentou. “Disseram coisas muito negativas sobre todas as canções que tinha composto para o disco e então deitei-as fora e comecei novamente do zero”, recorda ao Ípsilon por telefone duas semanas antes de se apresentar este sábado no Centro Cultural de Belém, Lisboa, e domingo no Hard Club, Porto. “Naquele dia senti-me com mil setas espetadas no coração porque aquele gajo [da editora] que até era meu amigo. Fechei o portátil onde lhe mostrei as músicas e nunca mais falei com ele.”
Sun foi, por isso, criado no meio da “dor de duvidar acerca de tudo quanto sentia enquanto pessoa, enquanto mulher e enquanto artista”. É um álbum construído sobre a dúvida e que nela se afunda evitando as soluções fáceis e óbvias. Cat Power quis livrar-se das guitarras e dos teclados que lhe eram familiares e foi à procura de uma sonoridade que nem a cantora sabia como reconhecer. Sabia, isso sim, que rejeitava violentamente a pressão da editora para entregar um hit record e para se entregar às mãos de “um produtor famoso”. “Ainda quero ter a decisão de fazer a merda que me apetece fazer”, diz passados três anos, com uma irritação que se diria de véspera. “Não quero mesmo voltar a essa dor carregada de dúvidas e de escrutínio pessoal, nem à alienação da minha editora quando mais precisava da sua aceitação e do seu apoio.”
A lição que Cat Power tirou da feitura de Sun foi, pois, a de que não deve voltar a pôr em causa a sua intuição. Sobretudo porque depois desse processo longo, tortuoso e penoso para o qual foi até arrastada a sua relação amorosa com o actor Giovanni Ribisi, terminada antes de o álbum estar concluído, Sun foi lançado e entrou para o top 10 de vendas nos Estados Unidos, feito inédito na carreira de Marshall. Por essa altura, no entanto, estava já deitada numa cama de hospital, internada devido a um angioedema. Embora as causas pudessem ser várias, tem a certeza de que, no seu caso, a perturbação imunológica que a colocou nos cuidados intensivos se deveu a um pico de stress consequência de tentar proteger-se do mundo. Quando entregou o disco, baixou as guardas e o corpo desabou. “Fiquei muito doente porque não acreditaram em mim”, insiste.
Nessa mesma altura em que estava hospitalizada, quase sem conseguir respirar e, diz ela, enquanto ouvia os médicos discutirem as medidas para lhe salvarem os pulmões, soube que Sun trepara até ao top 10 através de uma amiga. Mas mesmo depois de ter alta não demorou a cancelar a subsequente digressão europeia devido “à luta contra o angioedema” e à sua “bancarrota”. O dinheiro fora também sugado nos longos meses de composição e de gravação de Sun. E Cat Power teve então de se dedicar ao único dos seus talentos que igualará aquele que coloca ao serviço da música: sobreviver.
Pouco integrada
Produto de uma infância errática e de uma adolescência conturbada e em constante deslocação – “Passei por 13 escolas em dez anos, mudei imenso enquanto crescia em cidades diferentes”, diz Marshall ao Ípsilon –, Cat Power sempre se sentiu à margem, alguém cuja capacidade de integração era reduzida e rapidamente ultrapassada pelo relativo conforto da solidão. Depois de “ficar em casa de estranhos, crescer com gente desconhecida e estar em situações ridiculamente perigosas em criança e ter de sobreviver no meio de tanta merda”, sempre a saltitar entre cidades no sul dos Estados Unidos, decidiu ir para Nova Iorque sozinha, já agarrada à música como meio insuficiente de sobrevivência. “Também lá não me consegui integrar, era muitíssimo pobre, tive de roubar comida em mercearias para conseguir sobreviver, tudo porque me recusei a continuar a ser sulista a partir de um certo ponto da minha vida.”
Não espanta, por isso, a atitude felina e de animal ferido com que Cat Power reage a qualquer indício de falta de confiança ou de tentativa de ingerência na sua vida artística. Quem usa a música para se manter viva, física e mentalmente, não está propriamente disponível para ouvir que aquilo que cria está mal, que a sua verdade não serve, que pode ser melhorada para alcançar esse objectivo maior de ter um disco de sucesso – o que quer que isso queira dizer nos dias que correm. Não espantou também, por isso, que apesar de a investida em Nova Iorque ter compensado quando Steve Shelley, baterista dos Sonic Youth, descobriu Cat Power e lhe assegurou a gravação dos dois primeiros álbuns em 1994 – Dear Sir e Myra Lee, lançados nos anos seguintes –, Marshall tenha recusado entregar-se ao jogo de enorme potencial no circuito indie de cantora-compositora nos anos 90. Em vez disso, escusou-se a obedecer aos mandamentos de um manager. Quem mandava na sua carreira era apenas ela. E isso ficaria claro quando, após a edição de What Would the Community Think, resolveu eclipsar-se e ir trabalhar como babysitter algures na Oregon, mudando-se depois para uma quinta na South Carolina.
Como é evidente, foi sol de pouca dura. Cat Power achava que podia esconder-se e desistir do mundo da mesma forma que acreditava que o mundo desistia de si. “Cheguei ao ponto de já não me importar se me conseguia integrar porque era anónima e através do anonimato pode observar-se o mundo, ouvir conversas e estar em qualquer situação que nos permita aprender tudo porque ninguém espera que estejamos interessados, despertos, observadores”, comenta. Depois veio Moon Pix (1998), gravado com os Dirty Three, um renascimento em que a sua música abandonava a crueza ácida dos primeiros tempos. Era um primeiro momento fundador, razão pela qual se tem referido a Sun como uma investigação ao lado oculto desse álbum.
A descoberta de uma voz
Só mais tarde, no entanto, com a segunda investida na digressão de The Greatest (2005), ao não reunir as condições financeiras para seguir para a estrada com a original Memphis Rhythm Band, Cat Power diz ter encontrado a sua voz. Passou nessa altura por Portugal, de microfone na mão e entregando os instrumentos à Dirty Delta Blues Band, formada por gente vindas das fileiras de Jon Spencer Blues Explosion, Dirty Three, The Delta 72 e Lizard Music. Ou seja, substituía nesta sua luminosa aproximação à música soul a participação de extraordinários músicos que haviam partilhado palcos com Al Green por um grupo de gente (também ela extraordinária, ou não incluísse Judah Bauer e Jim White) que partia da mesma postura de misfit que sempre foi a essência de Cat Power.
“Com a Memphis Rhythm estava sóbria há pouco tempo, estava a enfrentar o mundo. Nunca antes tinha visto o público porque vivia atrás do meu cabelo e as minhas canções não eram sobre a minha cara, o meu corpo, o quão sexy podia ser se me estivessem a tirar uma fotografia”, recorda hoje. Não eram, portanto, matéria potencialmente pop; foram sempre um desabrido relato confessional. E foi nesse ambiente, em que finalmente destrinçava caras na plateia, em que nem guitarra nem piano criavam uma distância com aqueles que a seguiam, que sentiu poder cantar, entregar-se e regressar à infância, “quando adorava cantar em pequena com quatro, seis, oito anos e não era mais do que isso”. “Foi o melhor período de palco de toda a minha vida, não houve qualquer tristeza, a dor de cantar em público não estava lá e foi uma felicidade inteira. Foi essa banda, de amigos, que me devolveu uma felicidade que não sentia ao cantar desde que tinha oito anos.”
Agora que regressa a Lisboa a Porto a solo, algo que faz regularmente desde os 20 anos, agora que é mãe de um rapaz de seis meses, agora que se entusiasma ao falar da candidatura à nomeação pelo Partido Democrata do autodenominado socialista Bernie Sanders, agora que nos relata o acompanhamento preocupado que fez da greve de fome do músico e activista luso-angolano Luaty Beirão, agora que nos aparece no ponto em que poderá partilhar com os palcos nacionais meia-dúzia de temas novos, Cat Power aceita o seu lugar descentrado e percebeu que, possivelmente, é isso que a une ao seu público. “Vejo que as pessoas nos meus concertos se integram comigo”, diz. “Não sinto que esteja integrada na sociedade, mas vejo que há por todo o lado pessoas cientes de que há algo de muito errado com a forma como tudo funciona e como nos dizem para sentir, ser, andar, pensar, vestir, aprender, falar, amar.”
“Isso quer dizer que todos ganhámos”, conclui. Isso quer dizer que, em cada concerto, Cat Power acredita que, para além das canções, há uma história maior a ser contada: a de uma comunidade de sobreviventes.