Burocracia europeia e democracia nacional
Antecipar um rascunho do Orçamento nesta altura seria um grande pontapé na democracia.
Por esta altura, mais precisamente até ao dia 15, Portugal e os restantes países do euro têm a obrigação de enviar para Bruxelas um rascunho daquilo que será o Orçamento do Estado para o ano seguinte. O objectivo, no âmbito do chamado "Semestre Europeu", é que a Comissão possa emitir um parecer preventivo sobre os mesmos em Novembro, avaliando se as propostas cumprem com os requisitos do Pacto de Estabilidade. Durante o período de assistência financeira Portugal esteve dispensado desta formalidade, pois estava a prestar contas directamente à troika.
Agora, apesar de já não se encontrar sob resgate, o país volta a estar numa situação de excepção, pois o 15 de Outubro coincide com um período pós-eleições em que os principais partidos políticos estão numa frenética ronda de negociações para tentar saber quem vai, e como se vai, formar o próximo governo. E seria no mínimo insultuoso e pouco elegante estar a enviar para Bruxelas rascunhos de um documento que, na ausência de uma maioria absoluta, terá de resultar de uma conjugação de vontades e de programas.
Num primeiro momento, no dia a seguir às eleições, confrontado com esta questão, a posição do comissário europeu Pierre Moscovici foi a seguinte: “Não vemos nenhuma razão para alterar a data (…) As datas não mudam, [mesmo em cenários de eleições].” Assim, para Bruxelas o facto de haver eleições e de se estar num processo democrático de formação de um novo governo pouco ou nada importa para o processo burocrático do Semestre Europeu.
Neste início de semana ficou a saber-se que dois dias antes das eleições legislativas o Ministério das Finanças enviou uma carta à Comissão a informar que não enviaria o tal rascunho na data exigida por Bruxelas, já que “apenas o novo governo tem plena legitimidade para apresentar um Orçamento”. Uma posição democraticamente sóbria e que a Comissão pelos vistos continua a não perceber, uma vez que diz continuar à espera para breve de um documento vindo de Lisboa.
Com que cara é que Passos Coelho encararia António Costa se antes das negociações que estão a decorrer para a viabilização do governo e do Orçamento a actual coligação já tivesse enviado para Bruxelas o esboço do Orçamento? Seria visto, e bem, como uma afronta. Ainda todos se lembrarão do PEC IV, que a oposição acusou José Sócrates de negociar em Bruxelas nas costas da oposição. Ou mais recentemente quando este Governo enviou para Bruxelas o Documento de Estratégia Orçamental para 2012 a 2016 sem passar previamente pela Assembleia da República. Alguém vai ter de explicar ao senhor Moscovici que a burocracia e os formalismos de Bruxelas nem sempre têm o mesmo calendário que os processos democratas nacionais. Na Europa já se percebeu que a as “datas não mudam”, mas os comportamentos vão ter de mudar.