A família rastejante nas mãos do pai-besta

Até 25 de Outubro, Vale dos Barris será território de Abstenção. O texto de Abel Neves, que João Brites encena para O Bando, coloca um tiranete a abusar de uma família entretida com a raiva e o silêncio. Uma peça de brandos costumes.

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Abstenção vive enquanto “espécie de comédia de costumes”, apegando-se a um realismo que não chocaria descobrir como mote para uma telenovela, oferece uma pesada sugestão de ruptura iminente RITA SANTANA

Para o caso, interessa sobretudo que cruzeiro designe uma “cruz grande de pedra ao ar livre”. Uma cruz que há-de manter a morte a pairar o tempo todo sobre as cinco personagens de Abstenção (pai, mãe, dois filhos, namorada de um deles) e será incarnada, na verdade, por uma sexta figura que se mantém sempre fora do território concêntrico que representa o pequeno e escalavrado reino de um homem (“a besta”, chamam-lhe) que subjuga os restantes. A Abstenção, neste espectáculo d’O Bando que não é mais político do que qualquer outro da companhia – “Vivemos numa sociedade, num país, inseridos numa comunidade e achamos que os artistas têm de ter essa vertente”, comenta João Brites –, refere-se, antes de mais, aos sinos que imaginamos ouvir tocar quando se ouve a expressão “brandos costumes”, como se todo um povo fosse repentinamente vergado por tal chavão. “A abstenção”, justifica o encenador, “é uma espécie de indiferença, é o medo de mudança, de ter posição face a uma coisa. A gente refila e diz mal, mas depois não faz o gesto”. Tal como nesta família. Em que a ameaça de destronar o cruel patriarca não larga as personagens, a raiva cresce empurrando cada um para um estado crescentemente animalesco e só a iminente cegueira do pai (a decadência a que a passagem do tempo o obriga) diminui e vence "a besta".

“É uma peça em que tudo vai acontecendo, mas não acontece verdadeiramente nada”, diz João Brites.

Bestial
Há uma bestialidade bifurcada em Abstenção. Por um lado, a besta odiosa do pai, que se comporta com uma autoridade desmedida, ilimitada, reclamando cada um dos seres à volta como sua pertença; por outro, essa redução a um estado animal da família a que falta a coragem para depor o velho do seu trono. É um caminho para um estado selvagem, cada vez mais de gatas, cada vez mais rastejante, que é tanto a remissão naquilo que de mais puro deve haver na humanidade – a faculdade de decidir o seu próprio destino – quanto a resignação perante esse mesmo estado subalterno. “A pessoa que não conhece, não ousa e não conhece para além do que se vê”, pergunta Brites, “como é que essa pessoa pode sonhar, como pode criar mudança ou pensar noutra coisa?”

É a incapacidade de imaginar a diferença – algo “absolutamente terrível e contaminador”, aponta o encenador – que conduz à recusa em fazer parte e, no caso de Abstenção, à forma extrema de a mãe se entregar ao silêncio, calando dor e revolta, baixando a cabeça e deixando que o curso das coisas adquira uma aura de inevitabilidade. Este silêncio, no reduto familiar, é também a mordaça que permite a violência doméstica e as mais aberrantes formas de manipulação. Rosa, namorada de Joaquim – filho do pai-besta –, carrega até no ventre uma promessa de vida semeada pelo velho. Mas João Brites quer atribuir um papel menos passivo às mulheres do texto de Abel Neves e, por isso, encarrega-as de pequenas acções como virar os tubos que cercam o pai no seu posto de comando. Os tubos, como um canavial, são primeiro pretos; progressivamente, tornam-se brancos – à medida que a cegueira do velho avança, a luz nasce para os restantes e a gravidez anuncia um novo começo.

Acreditando que “a representação da realidade é muito mais do que a realidade e permite ter um olhar mais acutilante sobre essa realidade”, João Brites vai dispondo pelo palco elementos que ajudam a uma construção de Abstenção por camadas eivadas de simbolismos vários – que não privam a trama central da sua agudez. Não são apenas os tubos que ao tornarem-se brancos parecem fechar o pai num muro de velas que ardem pela sua alma, nem somente a água no açude que permite às personagens lavarem-se de culpas e remorsos, mas talvez, antes de mais, uma tia que se encontra fora do palco (e que se vai libertando das roupas rumo à nudez) diante da qual cada um colocará uma bandeira nacional. João Brites identifica nesta personagem tanto a morte como a deusa Europa; diante dela, Alemanha (o pai-besta), França (a mãe silenciosa e colaboracionista), Portugal ou Espanha (os subjugados). À tia-Europa cabe o papel de uma figura austera, fúnebre, enigmática, atemorizadora.

Esta é a forma encontrada por Brites para jogar em dois tabuleiros simultâneos: o da relativa verosimilhança, quando a história tem por paredes a vida familiar; o do plano simbolista, quando lhes cola uma outra leitura. Tanto Abstenção vive enquanto “espécie de comédia de costumes” (desconte-se a comédia), apegando-se a um realismo que não chocaria descobrir como mote para uma telenovela, como oferece uma pesada sugestão de ruptura iminente, em que o desespero alastra em boa parte porque a fuga parece sempre possível mas dificilmente concretizável. Será Rosa, a namorada de Joaquim, a única a retirar-se para parir longe da família (Rosa, a bandeira portuguesa, a afastar-se da família europeia para poder sobreviver?). Enquanto isso, o pai “mais frágil, mais vulnerável e patético”, vai ficando sozinho. E isolado numa aldeia que, território da ancestralidade, nos indica aquilo que é mais permanente ao longo dos tempos. Uns morrem, outros nascem – e a primeira coisa que fazem é berrar, mesmo que depois se esqueçam de como o fazer.

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