Estudantes sírios em Portugal: “Por favor, sintam-se em casa”

Chegaram cansados, mas com sorrisos que ofuscaram a guerra de que não querem falar. Mais de 30 estudantes universitários sírios aterraram este domingo em Portugal mas é na Síria – e em reconstruí-la – que pensam.

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Os estudantes sírios chegaram neste domingo a Portugal Bruno Lisita

Chegaram em duas carrinhas, directamente do aeroporto da Portela para o hotel onde decorreu a recepção, e podiam perfeitamente passar por um grupo de estudantes em viagem de estudo – mochilas às costas, cartões de identificação, malas e telemóveis. O grupo – na verdade são 40 novos bolseiros que chegam para o início deste ano lectivo, embora sete tenham chegado alguns dias antes – é composto na sua maioria por raparigas. Algumas vêm de hijab, outras de cabelo solto.

O caminho até aqui foi longo e emotivo. Salam avisa-nos logo que não dorme há três dias. “Passei o dia antes da vinda com a minha família e depois foi toda a viagem”, explica-se. Sente-se obviamente feliz por estar em Portugal, onde poderá ingressar no mestrado em Engenharia Informática na Universidade Lusófona. Terminou a licenciatura e pretendia continuar a estudar, mas, à semelhança de todos os que fizeram com ela a viagem, a guerra civil que assola a Síria desde 2011 mudou-lhe os planos. A felicidade convive, porém, com a preocupação com a família, especialmente o irmão mais novo, que deixou em Salamyiah, uma pequena cidade no Leste do país. Não desvia o olhar do telemóvel – “espero estar sempre em contacto com eles”.

Mas não é da guerra que a jovem de 24 anos – cujo nome significa “paz – quer falar. Esse foi o seu dia-a-dia nos últimos quatro anos e, por agora, a sua vida será outra, mesmo que não saiba ao certo o que aí vem: “Espero envolver-me na comunidade estudantil e fazer aquilo que se faz aqui.”

Apelo global
Minutos antes, Jorge Sampaio deixara precisamente esse conselho no discurso de recepção – “Conheçam o país, conheçam as pessoas. Por favor, sintam-se em casa.” Depois de cumprimentar individualmente cada um dos estudantes, o grande responsável pela plataforma reconhecia a modesta ajuda que a integração de umas dezenas de estudantes representa para amenizar o drama sírio. E, por isso, deixava um apelo muito claro para que a comunidade internacional se mobilize em torno desta questão.

“As universidades e politécnicos podem ser forças decisivas na mudança”, observou Sampaio, e a Plataforma de Assistência a Estudantes Sírios representa precisamente esse espírito. Mas os inúmeros entraves – com a escassez de fundos a encabeçar a lista – que a iniciativa enfrenta impõem uma mudança mais global. O ex-Presidente da República sublinhou várias vezes a necessidade de se “discutir a sério o que pode ser posto na agenda internacional humanitária” no que respeita especificamente à questão do ensino superior. “Se tivéssemos feito este esforço desde o início da guerra para cuidar daqueles que tiveram de interromper os seus estudos, e são milhares, já havia muito mais gente, espalhada pelo mundo, para serem integrados no futuro numa sociedade que é a deles”, afirmou Jorge Sampaio.

Com a guerra prestes a entrar no seu quinto ano, há cada vez mais preocupação em relação àquilo que muitos chamam de “geração perdida” – as centenas de milhares de crianças e jovens sírios que hoje enchem campos de refugiados na Turquia ou na Jordânia. A Politico descrevia-os recentemente como uma “bomba-relógio”, permeáveis aos ensinamentos de fundamentalistas islâmicos e imbuídos de um sentimento de vingança por tudo aquilo por que estão a passar.

E porque em Alepo ou nos subúrbios de Damasco o caos e a destruição não param, o esforço de consciencialização não pode esperar. Esta semana, Sampaio vai ter uma série de reuniões em Nova Iorque, aproveitando também o facto de a atenção do mundo estar virada para a Assembleia-Geral das Nações Unidas. Mas o trabalho de lobbying tem sido “constante”, garante Helena Barroco, assessora do ex-Presidente e o seu braço direito à frente da plataforma, insistindo sempre na criação de um “mecanismo de resposta rápida a crises a nível global” no campo do ensino superior.

Um dos estudantes recém-chegados fez questão de dirigir algumas palavras, que acabaram por ser curtas, culpa da emoção. Mas mesmo falando pouco, com a generosidade que uma simples frase pode conter, o jovem tocou na urgência que uma actuação deste tipo tem: “Todos os dias há mais estudantes a precisar de bolsas destas.”

Não é, portanto, surpreendente que a plataforma tenha sido contactada por 2500 pessoas, entre pedidos de informações e candidaturas. Mesmo com novos apoios conquistados recentemente – como os casos do Banco Santander, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento ou do Governo de Andorra – continua a ser reduzida a ajuda que a plataforma pode dar. A prioridade está agora em assegurar a chegada de um grupo de jovens estudantes exclusivamente de Medicina, que vai requerer “uma angariação de fundos especial”, como explicou anteriormente Helena Barroco.

“A Lusófona é boa?”
Ao lado de Sampaio, a dar as boas-vindas, estiveram também alguns dos estudantes que chegaram no último ano. Um deles conta ao PÚBLICO que lhe vieram pedir logo informações sobre transportes, preços e até sobre professores. Em geral, ninguém quer recordar a guerra, mas este jovem de 26 anos não conseguiu deixar de manifestar a sua opinião sobre o conflito em curso na Síria – e por temer represálias não quis ser identificado. “A guerra era evitável, o governo tentou travá-la. [Agora] o meu exército está a defender o país.”

Até há quase um ano, o estudante vivia em Damasco – um dos principais focos dos combates entre as forças leais ao Presidente Bashar al-Assad e os grupos rebeldes. Da guerra, lembra-se sobretudo de carros a explodir e do sangue que se seguia. Na falta de uma explicação para o eclodir do conflito, tenta encontrar paralelismos que lhe dêem alguma esperança. “Sinto que é a nossa vez de sofrer; na Europa também sofreram com a Segunda Guerra Mundial.”

Esse quotidiano mudou num dia semelhante a este, quando também desembarcou em Lisboa. Estava “muito feliz” e sentia que “agora o futuro pode começar”. Daqui a oito ou nove meses deverá defender a tese de mestrado em Ciências da Computação no Instituto Superior de Engenharia do Porto. Diz estar “aberto a todas as oportunidades”, no que toca ao futuro, mas o regresso à Síria é incontornável. “Acho que é o objectivo de todos aqui”, afirma.

O novo grupo de bolseiros é composto quase exclusivamente por estudantes de mestrado ou doutoramento, mas Mustafa constitui uma orgulhosa excepção. Tem apenas 18 anos e veio para estudar Engenharia Informática na Lusófona (“é boa?”, pergunta de imediato). Tem um optimismo inabalável e um raciocínio pragmático. O derradeiro dia antes da partida foi passado num dilema: o coração estava triste por deixar a família, mas a cabeça dizia-lhe que tinha de vir. Prevaleceu a razão: “Não vou encontrar o meu futuro na Síria.”

Mustafa trava o dramatismo das suas palavras e apressa-se a regressar ao optimismo. “Coisas más acontecem, mas o meu país vai voltar à vida”, diz. E sorri de novo. Para si, Portugal resumia-se à visão mais clássica de um miúdo da idade dele de qualquer lado do mundo: Cristiano Ronaldo, futebol, Benfica. E agora é também um sonho tornado real.

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