“Eu tenho de começar do zero, aqui. É a minha vida, a única”

Em Março chegaram a Portugal dezenas de estudantes sírios, quase todos já refugiados. Ameer ainda não se habituou à tranquilidade de Lisboa mas sorri sem parar.

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Dezenas de estudantes sírios aterraram em Lisboa na madrugada de 1 de Março Enric Vives-Rubio

Nada disto é importante, mesmo que o seja. Importante mesmo é o sorriso de Ameer, tão doce e bonito, tantas vezes repetido ao longo de quase duas horas de conversa. Ameer é alto, muito esguio, quase frágil. Depois sorri e conta como começou a estudar costura e design de moda, como conseguiu abrir uma pequena loja em Damasco e chegou a produzir as fardas que a ONU encomendava para os alunos das escolas. E parece forte, quase invencível.

Ameer é sírio, viveu toda a vida em Damasco. Em 2011, começou no seu país uma revolução que ele não esperava e que depois descambou numa repressão que ele nem viu chegar e a seguir numa guerra sanguinária que ele nem sequer pensava possível de acontecer assim, à sua volta. A partir de certa altura não havia nada a fazer a não ser estar em casa. “Estava a passar-me! Só conseguia pensar, ‘mas o que é que eu vou fazer, mas o que é que eu vou fazer?’.”

A idade de Ameer era a mais perigosa para ficar por ali, pelo menos se ele não quisesse acabar de arma na mão, obrigado a escolher lados e a entrar numa guerra sem sentido. E foi então que os pais lhe sugeriram que deixasse a Síria – e os deixasse a eles. A mãe, arquitecta, o pai, médico, ficaram; os filhos foram à procura de vida para outros lugares. A primeira etapa, o Líbano, dificilmente poderia ter corrido pior. “O Líbano é duro”, diz Ameer, antes de contar como arranjou trabalho na cafetaria de uma universidade. “Durou três dias. Depois, ‘sabes, tu és sírio, és palestiniano’”.

Várias humilhações a seguir, Ameer estava deprimido e a considerar voltar a casa. Os momentos de desespero têm destas coisas: agarrou-se ao computador e concorreu a todas as bolsas de estudo para sírios que encontrou. Um dia recebeu um email a pedir-lhe que confirmasse a sua disponibilidade para vir estudar para Portugal, no âmbito da Plataforma Global de Assistência Académica de Emergência a Estudantes, lançada pelo ex-Presidente português Jorge Sampaio. “Estás pronto a partir?”, perguntavam-lhe.

Ameer não acreditou. Nos dias seguintes procurou confirmar a veracidade do convite. Que sim, disseram-lhe no consulado. O avião está no Chipre e aterra em Beirute na sexta-feira. “Eu continuava sem acreditar. Onde é que estava o visto? Onde é que estava o bilhete?”, recorda. “Enfim, como não estava a morar muito longe do aeroporto decidi ir até lá, à hora marcada.”

No dia seguinte, Ameer aterrava com algumas dezenas de jovens sírios em Lisboa, a bordo de um C-130 da Força Aérea. “Fiquei tão feliz. No primeiro mês não podia acreditar. Estava confuso, estava feliz, eram demasiadas emoções.” Os pais terão experimentado emoções semelhantes. “A minha mãe desatou a chorar. Mas ficou tão contente, é arquitecta, só dizia ‘tu vais ser como eu’”. Ameer veio estudar Design para o IADE – Instituto de Artes Visuais, Design e Marketing. “Não nos desapontes”, pediram os pais, muitas vezes.

Ameer tem aulas das 14h às 19h e passa muitas, muitas horas a estudar. Veio para o primeiro ano e chegou a meio do segundo semestre. “Eu desenho, desenho, mas tenho de fazer dez desenhos enquanto os meus colegas acabam à primeira ou segunda tentativa”, explica. A intensidade do estudo ajuda, mas não torna tudo fácil. As aulas são em inglês, menos uma que é em português e de português Ameer ainda só consegue dizer palavras soltas e algumas expressões, nome de alimentos, pedir indicações. O professor da disciplina em português deu-lhe um livro e dispensa das aulas; ele vai na mesma, para se ir “habituando aos sons”.

O silêncio de Lisboa
Não foi fácil combinar um encontro com Ameer. A prioridade são mesmo os estudos e, claro, não desapontar os pais. A conversa lá acabou por acontecer, no anfiteatro ao ar livre da Fundação Gulbenkian, “um sítio bom para vir desenhar”.

A vida em Lisboa é muito diferente da vida em Damasco. Ameer ainda não se habitou “ao silêncio”, “à tranquilidade”, ao facto de as lojas terem hora para fechar. “Acho que nunca me vou habituar. O Bairro Alto é bom para descontrair… mas é tranquilo”, diz, quando comparado com a rua que deixou para trás na capital síria. Partilha casa com mais quatro estudantes, faz o caminho de casa para a escola e já conhece vários sítios na cidade mas tem dificuldade em decorar os nomes.

Ameer pensa muito nos pais, com os quais fala sempre que consegue. Também pensa nos mortos e nos desaparecidos. “Já não sobram muitos amigos lá. Os que morreram morreram, os que foram presos foram presos”, diz. Muitos saíram, como ele. “Perdi alguns amigos. Perdi a loja, perdemos uma casa, o meu pai perdeu a clínica. Pensei: ‘Eu não quero perder-me a mim, e não quero que os meus pais me percam, não sei se eles aguentariam’”.

“Na Síria já não há felicidade. A Síria nunca vai voltar ao que era. Mas um dia vai voltar a poder-se ser lá feliz. Tem de ser, tem de ser. Perdemos todos tanto. Tivemos todos de começar do zero. Eu tenho de começar do zero, aqui. É a minha vida, a única.” Sim. A vida de Ameer trouxe-o a Lisboa, com o frio, o “vento doido do fim de tarde”, todas as dificuldades de ser o único sírio da sua faculdade e de estar a começar tudo de novo, longe de todos e do mundo que conhecia até há poucos meses. É a vida, a vida de Ameer, e ele vai vivê-la. Isso, isso é que é importante.

“Na maior parte do tempo penso no meu país, e sorrio, e penso no meu país e choro, é felicidade e tristeza ao mesmo tempo.”

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