Estatística até à data: 73 novos amantes
Raquel André teve encontros de uma hora com 73 desconhecidos para construir a Colecção de Amantes que agora estreia no D. Maria, abrindo o ciclo Recém-Nascidos. Bem ou mal, todos ficaram na fotografia. Esta é a história de um desses blind dates.
É um T1 a que só se chega depois de se ir dar a volta ao quarteirão pelas traseiras e de vários lanços de escadas de madeira, um T1 todo encandeado pela luz mortal do Verão em Lisboa, que invadiria a sala mesmo que as portadas das duas grandes janelas abertas sobre a Igreja Paroquial das Mercês estivessem fechadas (não estavam). Várias vezes, com várias pessoas, todas desconhecidas – pelo menos teoricamente: houve casos em que ela abriu a porta e descobriu que algum amigo, algum ex-namorado, também tinha querido marcar encontro; houve um caso, culpa nossa, em que ela sabia que o encontro não era bem com uma pessoa, era com um jornal –, Raquel André foi feliz ali. Na verdade (é o que mostram as fotografias), Raquel André foi feliz em todos os apartamentos onde marcou encontros de uma hora com os 73 desconhecidos entretanto adicionados à sua Colecção de Amantes, como testemunharão, até dia 20, os espectadores da conferência-confessionário com que abre esta noite, na Sala-Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, o ciclo Recém-Nascidos.
Tal como os números que a dada altura do espectáculo transformam cada um dos 73 encontros individuais em carne para canhão das estatísticas – “49 eu desconhecia totalmente, 19 eu conhecia mas sem intimidade, com seis eu tinha alguma intimidade, com três eu tinha bastante intimidade, um quis oferecer-me dinheiro” –, as fotografias que Raquel André pediu aos seus amantes para encenarem como prova de que ali houve de facto uma intimidade, mesmo que de muito curta duração, são tudo o que sobrevive dos meses passados a construir a colecção. Foi esse, de resto, o pacto que fez com os participantes: o que acontecesse nos encontros ficava nos encontros, desde que no final dos 60 minutos a coleccionadora obtivesse um troféu em formato JPG para exibir em público sempre que o espectáculo for apresentado. Em 73 encontros, teve todo o tipo de amantes: os que quiseram ir para a cama e os que quiseram ir para a cozinha, os que quiseram tomar banho e os que quiseram tomar pequeno-almoço, os que quiseram contar-lhe a vida e os que quiseram contar-lhe “uma curiosidade sobre o John Coltrane”. Também há estatísticas disso: a actriz apontou num caderninho quantos beberam café (mais do que os que beberam chá), quantos lhe deram conselhos, quantos falaram de ex-relações, quantos cozinharam, quantos comeram, quantos se emocionaram, quantos quiseram ouvir música, quantos souberam a password do seu computador (apenas um, e ela ainda a mantém).
É isso que está nas fotografias que agora se sucedem no ecrã do D. Maria – fotografias de tardes no sofá e de manhãs no chuveiro, fotografias de raparigas a lavarem a loiça e de rapazes sem roupa em cima dela. Antes de dar um espectáculo, esta colecção deu um slideshow com 73 capítulos, ou uma caderneta com 73 autocolantes: um para cada ficção de intimidade que os amantes de Raquel André, cidadãos anónimos ou nem tanto (Tiago Rodrigues, o novo director do Teatro Nacional D. Maria II, foi dos primeiros a inscrever-se em Portugal, quando o Festival Condomínio deu à actriz a possibilidade de prolongar a pesquisa que tinha iniciado no Brasil), pessoas de diversas idades, nacionalidades e proveniências, imaginaram a pedido dela. Uma ficção muito parecida com a vida real, ou lá como se chama aquilo que se exibe no Facebook (e que dantes se exibia nos álbuns de fotografias, mas muito menos freneticamente, e para uma audiência bem mais circunscrita), no sentido em que a esmagadora maioria das imagens que o peculiar processo de construção deste espectáculo produziu são selfies bonitas, como se tudo na intimidade fosse bonito.
Parte da confusão mental do espectador de Colecção de Amantes vem daí: como no Facebook, é difícil perceber onde acaba a ficção e onde começa a realidade. Não só porque há essa coisa, aparentemente tão inevitável como a luz mortal que invade este segundo andar da Rua Eduardo Coelho, de toda a gente querer ficar bem na fotografia, de toda a gente querer mostrar, para efeitos de publicação, o seu melhor lado (ou nem toda: houve quem quisesse ficcionar o fim de uma relação, ou até a morte da amante Raquel André, houve quem não quisesse aparecer na foto “por causa da namorada”); mas também porque mesmo que toda a intimidade documentada pelas fotografias seja uma ficção, incluindo a intimidade da nudez e do contacto físico (dentro de limites que a actriz não quer revelar porque “o mais maravilhoso disto é nunca se saber o que se passou realmente”), ela teve de acontecer para poder ser fotografada.
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Ninguém nos contou, nós vimos: Raquel André a abrir a porta do apartamento, a sentar-se no sofá para explicar que no final do encontro tem de haver uma fotografia compatível com a história que vamos viver por uma hora, a de duas pessoas que partilham deste T1 há pelo menos quatro anos, e que cabe a quem se inscreve nos encontros inventar essa história (e, portanto, definir o tipo de relacionamento que há entre as suas duas únicas personagens). Também ninguém nos contou, mas nós vimos, que é possível contar segredos ao primeiro desconhecido que nos aparece à frente – mesmo que seja apenas porque o tema obrigatório é a intimidade, e é preciso fazer alguma coisa com ela (tipo tomar o pequeno-almoço e a seguir lavar a louça).
De uma forma ou de outra, a ficção torna-se realidade (ou a realidade torna-se ficção, também estamos baralhados): no frigorífico desta casa onde vivemos há pelo menos quatro anos com Raquel André há iogurtes líquidos e meloa para o pequeno-almoço, duas coisas que poderíamos ter sido nós a comprar ou a pôr na lista de compras. Imaginamos que todos os outros amantes de Raquel André tenham tido a mesma sensação de verosimilhança, ainda que em modo wishful thinking. É verdade ou é mentira? “Jogo com isso logo a partir do momento em que escolho o dispositivo da fotografia: se é um documento, é um documento falso, porque aquilo que está a registar é apenas a ficção de uma intimidade. Mas até isso é um paradoxo: enquanto a encenamos, a intimidade existe”, diz-nos a actriz já depois do primeiro encontro (mais carne para o canhão das estatísticas: “42 amantes eu já reencontrei , três estão nesta sala, um eu não quero coleccionar”).
Iniciada em Maio de 2014 no Rio de Janeiro e depois completada em Lisboa e em Ponta Delgada, a convite do Festival Walk&Talk, a Colecção de Amantes de Raquel André é em parte o resultado directo de um período de emigração no Brasil e das dúvidas existenciais que ele engendrou: “Em quatro anos tive 11 casas, e de repente isso baralhou-me imenso: o que é a minha casa? Ao mesmo tempo obrigou-me a reflectir sobre o modo como as pessoas entram em contacto com um desconhecido e a partir de que momento ele se torna um amigo íntimo”. O formato ganhou depois forma à medida que prosseguia um mestrado em que foi atrás do coleccionismo como ferramenta de criação em artes performativas e que se sobrepunham pensamentos muito de aqui e de agora sobre esta lógica “muito capitalista” de acumular amigos e documentar tudo ao minuto (“O que comeste, com quem estiveste, o cabelo que cortaste, a unha que pintaste…”), se possível com fotos, no Facebook. Foram, e ainda são, pontos de interrogação atrás de pontos de interrogação: “Como é que se colecciona o efémero, a memória, o que nos escapa das mãos? Não havendo nada de mais efémero do que o encontro entre duas pessoas – porque as pessoas estão em constante actualização –, quis perceber como é que podia coleccionar essa intimidade e cheguei a esta ideia da colecção de amantes. Mas de amantes no sentido amplo: usamos a palavra para designar aquele que não podemos amar, mas se formos à origem significa aquele que amamos, ou aquele que ama.”
Seja onde for que a colecção a leve, Raquel André quer continuar a adicionar novas pessoas ao seu portfolio a cada nova apresentação numa cidade diferente, para que Colecção de Amantes nunca deixe de ser um organismo vivo: “Acho que este espectáculo é mais sobre o que eu não tenho, sobre aquilo de que ando à procura, do que sobre aquilo que acumulei.” É possível que o sentido deste abismo seja o abismo propriamente dito, com o risco acrescido não de possíveis ameaças à integridade física mas “daquilo que pode acontecer quanto encontramos alguém”: “Com algumas destas pessoas senti que podia ficar o dobro do tempo, uns dias, uma vida; com outras cinco minutos chegavam. Não é sempre fácil: já me tiraram o tapete várias vezes, não estou num lugar confortável nem protegido. Mas sou uma coleccionadora obstinada, não quero parar de coleccionar.”