Crise dos refugiados: a hipocrisia dos países árabes-islâmicos ricos
A crise de refugiados que hoje enfrentamos é, de alguma forma, consequência da rebelião armada contra o governo de Assad.
O assunto é, sem dúvida, dos mais delicados que a União Europeia tem em mãos — mais até do que a crise da Zona Euro e da Grécia —, devido às possíveis consequências duradouras nas sociedades europeias. Nada indica que a dimensão da vaga de refugiados vá diminuir nos próximos tempos, pela persistência das guerras que as originam. Às vagas de refugiados acrescem os expressivos fluxos de migrantes à procura de melhores condições de vida, da Europa Balcânica (especialmente do Kosovo) e da África subsariana. Tendo em conta que, na crise actual, a principal origem dos refugiados é a Síria — e que estes são maioritariamente árabes e muçulmanos sunitas —, uma questão ocorre: por que razão não são os países árabes ricos do Médio Oriente o principal destino de acolhimento desses refugiados? (Ver a análise feita neste artigo da BBC de 2/9//2015, “Migrant crisis: Why Syrians do not flee to Gulf States”, http://www.bbc.com/news/world-middle-east-34132308.) A questão faz tanto mais sentido se pensarmos que a proximidade geográfica, linguística, cultural e religiosa é muito maior do que face a Estados europeus como a Alemanha, a Áustria, ou a Itália, por exemplo. (Poderá ser um contra-argumento que aquilo que atrai os refugiados para a Europa não é só a prosperidade material, mas também a democracia, a liberdade e a tolerância). Esta mesma interrogação foi colocada por um muçulmano britânico, Zahid Nawaz, numa carta dirigida ao Financial Times, publicada a 28/08/2015 sob o título “Hypocrisy of the Muslim Gulf countries” / Hipocrisia dos Países Muçulmanos do Golfo. Vale a pena reproduzir aqui alguns excertos. O autor começa por deplorar a tragédia humana em curso, mostrando a sua decepção pela atitude dos países muçulmanos ricos do golfo “[…] ver refugiados sírios, iraquianos, afegãos e sudaneses, quase todos muçulmanos, arriscarem as suas vidas tentando viajar para a Europa quando há, potencialmente, uma rota muito mais fácil para a Arábia Saudita e os Emiratos, é extremamente decepcionante.” Em seguida, faz notar a atitude de quase indiferença face aos refugiados, contrastivamente com a política de financiamento de grupos rebeldes na guerra da Síria e a riqueza que ostentam: “Esta falta de vontade de enfrentar o custo humano ocorre apesar do alegado financiamento significativo da rebelião na Síria, pelo Qatar, Arábia Saudita e Emiratos. Enquanto isso, o Qatar continua a gastar enormes quantias num Mundial de Futebol e o Dubai em infra-estruturas para uma Expo-Mundial.” Por último, termina notando o seguinte: “os muçulmanos são continuamente lembrados para tratar os outros muçulmanos como parte da umma [a comunidade dos crentes] um elemento constante no desenvolvimento do Islão. Mas quando se trata de fomentar, a longo prazo, uma acção sustentável para manter refugiados muçulmanos em países muçulmanos, a hipocrisia dos regimes locais da Arábia Saudita, Emiratos Árabes e Qatar é uma fonte de enorme decepção para mim e estou certo que para muitos outros muçulmanos.“
2. Se a Turquia (0,8 milhões), o Líbano (1,2 milhões) e a Jordânia (0,6 milhões) — Estados com fronteiras directas com a Síria — já receberam um número elevado de refugiados do conflito sírio, o mesmo não se pode dizer da Arábia Saudita, Emiratos Árabes Unidos, Qatar, Kuwait, Omã e Bahrein. Todos estes Estado estão, em termos geográficos, relativamente próximos da Síria, embora sem fronteiras directas. Mas, mais importante do que isso, estão entre os mais ricos do mundo — mais até do que muitos dos países mais prósperos da União Europeia como veremos em seguida. Estão, certamente também, como já referimos, muito mais próximos em termos culturais, religiosos e linguísticos. Importa notar que estes são objectivamente factores que tendem a facilitar a integração nas sociedades de acolhimento. Um olhar para as estatísticas do Banco Mundial (2014) não deixa grandes dúvidas sobre a riqueza e meios materiais destes países para acolherem muitos dos refugiados. Olhando para o topo, para os primeiros vinte e cinco lugares do ranking mundial do PIB per capita — ou seja dos países mais ricos do mundo —, encontramos o seguinte quadro. Seis Estados árabe-islâmicos encontram-se nesse ranking, por esta ordem: em 1º lugar o Qatar (à frente dos países europeus mais ricos, como o Luxemburgo e a Noruega); em 4º lugar o Kuwait (à frente, da Noruega, frequentemente considerada o país com mais qualidade de vida); em 8º lugar os Emiratos Árabes Unidos (à frente da Suíça); em 11º lugar a Arábia Saudita (à frente de países europeus como a Holanda, Áustria, Suécia, Dinamarca ou Alemanha); em 17º lugar Omã (à frente da Suécia, Dinamarca e Alemanha); em 23º lugar o Bahrein (à frente da Bélgica, Finlândia, Reino Unido e França). Note-se ainda que, todos eles, à excepção de Omã, se encontram classificados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), na categoria mais elevada, o desenvolvimento humano muito elevado. No ranking do PIB, as estatísticas do Banco Mundial (2014) confirmam também o já mencionado. A Arábia Saudita 19º lugar (à frente, por exemplo, de economias como a Suíça, a Suécia, a Bélgica ou Áustria); os Emiratos Árabes Unidos em 30.º lugar (à frente da Dinamarca e Finlândia); o Qatar em 50.º, à frente da República Checa; o Kuwait, em 56.º lugar, à frente da Hungria, onde temos visto algumas das imagens mais desesperadas de refugiados em solo europeu.
3. Poderá argumentar-se que são Estados de pequena dimensão, pelo que teriam dificuldades em fazer esse acolhimento. Talvez, mas não é esse, seguramente, o caso da Arábia Saudita. Com um território superior a 2 milhões de km² e cerca de 28 milhões de habitantes, o país é bem conhecido pelos seus enormes recursos petrolíferos. Pelas suas ambições de potência regional do Médio Oriente e de liderar Islão, seria de esperar, pelo menos, uma atitude de solidariedade com os seus “irmãos muçulmanos” sunitas. A esmagadora maioria dos refugiados da Síria, como do Iraque ou Afeganistão, etc., são muçulmanos sunitas que, teoricamente, se sentiriam bem num país rico, com similar religião e proximidade cultural. (Nem sequer falamos em acolher outros seres humanos fora do Islão sunita, como os xiitas, yazidis ou cristãos…). Nada disso ocorre. O acolhimento é praticamente inexistente. O país nem sequer é signatário das convenções internacionais sobre os refugiados, o que lhe dá mãos livres para deportações em massa que regularmente faz. (Ver, entre muitos outros, o relatório da Human Rights Watch “Saudi Arabia: 12.000 Somalis Expelled. Mass Deportations Without Considering Refugee Claims”, 18/02/2014, https://www.hrw.org/news/2014/02/18/saudi-arabia-12000-somalis-expelled). O mesmo ocorre com os Emiratos Árabes Unidos, uma federação de sete Emiratos do Golfo Arábico (onde se destaca o riquíssimo Dubai, paraíso exótico de milionários), com cerca de 83 km² e pouco mais de 8 milhões de habitantes. Com algumas das maiores reservas de petróleo, sendo, como já referido, a 30º maior economia mundial e um dos Estados mais ricos do mundo poderia — deveria — ser um destino natural de muitos refugiados. Também não é. As razões são similares às da Arábia Saudita. Ambos criam enormes dificuldades no acesso ao seu território, através inúmeras restrições à concessão de vistos de entrada, ou qualquer reconhecimento do estatuto de refugiados, tal como consta das convenções internacionais. Muito convenientemente, também não são parte da Convenção das Nações Unidas de 1951, nem do Protocolo de 1967, sobre o estatuto dos refugiados. Similar situação ocorre com os restantes Estados árabes-islâmicos mais ricos do golfo: Qatar, Kuwait, Omã e Bahrein. Acresce o facto de normalmente não existir qualquer legislação interna sobre os refugiados, o que os deixa completamente à mercê da arbitrariedade. Ironicamente, até existe uma convenção no âmbito da Liga Árabe, feita em 1994, sobre o estatuto dos refugiados nos países árabes. Só que também não está em funcionamento porque não foi ratificada pelos seus signatários. É letra morta num papel.
4. Ainda está bem gravada na memória europeia o que foi a impressionante mobilização do mundo árabe-islâmico na altura da publicação das caricaturas do Profeta Maomé no jornal dinamarquês, Jyllands-Posten, em finais de 2005 e inícios de 2006. Os governantes da Arábia Saudita, Kuwait, Qatar, Emirados Árabes Unidos, Omã, Bahrein, etc. foram alguns dos que mais protestos fizeram e mais mobilizaram as suas populações nesse sentido. A Organização da Conferência Islâmica (OCI) e a Liga Árabe estiveram também na linha da frente, incluindo da adopção de sanções e condenação da Dinamarca nas Nações Unidas. Hoje, quando o sofrimento de milhões de muçulmanos e outros, vítimas da guerra na Síria e dos múltiplos conflitos internos ao mundo árabe-islâmico, mais requeria a sua acção enérgica, tentam passar despercebidas e iludir as suas responsabilidades. A estratégia parece ser deixar cair o ónus do problema sobre a União Europeia, jogando com o impacto das trágicas imagens que temos visto nos media e o sentimento de culpa dos europeus. Infelizmente, o que se pode passar nos próximos anos, arrisca-se a ser um remake do que já vimos nos conflitos e tragédias humanitárias da Jugoslávia dos anos 1990. Se, para receber refugiados, as portas dos países árabes-islâmicos ricos estão fechadas, para expandir a sua influência político-religiosa na Europa, estas podem abrir-se rapidamente. São, ou deveriam ser, bem conhecidas as actividades da Arábia Saudita, do Qatar e outros, lesivas dos interesses europeus de integração das populações acolhidas. Nos anos 1990, o dinheiro saudita do petróleo apareceu, rapidamente, na Bósnia, no Kosovo, na Macedónia e na Albânia, para construir mesquitas e enviar imãs com a missão de expandirem o wahhabismo — uma versão purista e retrógrada do Islão, a qual tende a radicalizar os muçulmanos num ambiente tão diferente como é o da Europa secular. Seguiram-se-lhe certas ONG’s, supostamente com fins caritativos mas mais preocupadas em islamizar — alimentos halal (permitidos), véu islâmico, etc. —, do que em prosseguir fins genuinamente humanitários. Se isto vier a acontecer novamente, será uma ironia (e miopia) europeia. Esta será tanto maior quanto, em grande parte, a crise de refugiados que hoje enfrentamos é, de alguma forma, consequência da rebelião armada contra o governo de Assad, financiada sobretudo pela Arábia Saudita e outros países árabes sunitas. É, também, resultado da míope intervenção europeia / ocidental na Líbia, para derrubar Kadhafi, que deixou o caos e a anarquia no Sul do Mediterrâneo, às portas da Europa.
Investigador