Delfim de Kirchner vence primárias e parte como favorito para a presidência
Daniel Scioli, o candidato oficialista abençoado como herdeiro politico pela Presidente, sai na frente para as eleições de Outubro
Segundo os resultados do escrutínio de domingo, com 38% dos votos, a Frente para a Vitória, liderada pelo representante do “oficialismo”, o conservador governador da província de Buenos Aires, Daniel Scioli, firmou uma vantagem de oito pontos para a segunda força mais votada, a coligação Mudemos, que vai apostar no autarca de Buenos Aires, Mauricio Macri, como candidato presidencial.
O popular autarca, que pertence ao partido de centro-direita Proposta Republicana (PRO), não reúne a unanimidade como líder indiscutível da oposição ao “kirchnerismo”, mas quase — numa eleição que é nominal (no total, eram 15 pré-candidatos), recolheu 24% dos votos, contra 6% dos seus rivais internos da União Cívica Radical e Coligação Cívica ARI.
Logo depois, com o apoio de 20% do eleitorado, aparece a ala dissidente do peronismo, que fundou uma nova aliança alternativa, Unidos por uma Nova Argentina, cuja liderança era contestada por Sergio Massa, o antigo chefe de gabinete de Cristina Kirchner e que rompeu politicamente com a Presidente (14%), e pelo governador da província de Córdoba, José Manuel de la Sota, que nunca aderiu à via kirchnerista (6%).
A votação, que é obrigatória, decorreu num ambiente complicado, com dificuldades logísticas que provocaram longas filas e atrasos no processo, aliadas a denúncias de irregularidades, a alimentarem a desconfiança e a tensão. Os 32 milhões de eleitores tiveram de esperar mais de cinco horas pelas primeiras projecções de voto; os resultados provisórios só foram autenticados mais de um dia depois do encerramento das urnas, mas acabaram por ser aceites por todos os concorrentes (só os que obtiveram o mínimo de 1,5% terão direito a apresentar-se na votação de Outubro).
De acordo com os analistas políticos argentinos, a votação das primárias oferece um primeiro retrato do estado da corrida presidencial, mas os resultados não devem ser interpretados como indicações precisas do sentimento do eleitorado. O maior mérito desta eleição é servir de tiro de partida: é a partir daqui que os candidatos considerados competitivos definem estratégias, negoceiam apoios e fixam o seu manifesto político. E é também agora que começa o movimento de migração — ou reagrupamento — do eleitorado: “Tudo se modificará nos próximos dois meses e meios, debaixo da influência da campanha eleitoral, das denúncias de corrupção e das vicissitudes económicas”, vaticina o El País.
O oficialista e actual favorito à sucessão de Kirchner é aquele que enfrenta maiores riscos. Dependendo da evolução do desempenho económico e do desenrolar das investigações relativas às suspeitas que recaem sobre vários membros da equipa da Presidente, Daniel Acioli pode ver a sua vantagem evaporar, e a “agulha” da opinião de pública virar para o campo da oposição.
O candidato peronista — um movimento populista que se adapta à conjuntura e sobrevive em sucessivas encarnações mais à direita ou mais à esquerda — exaltou a sua vitória como “contundente”, mas não conseguiu ultrapassar o patamar dos 40% que é tradicionalmente apontado como garantia de eleição à primeira volta. Os comentadores notam que neste primeiro teste do oficialismo nas urnas, a base de apoio que deu as maiorias a Cristina em 2007 e 2011 compareceu a favor de Scioli e da continuidade das políticas actuais: apesar de 12 conturbados anos de Governo de Cristina, as presidenciais de Outubro ainda são encaradas como um referendo ao kirchnerismo. Scioli, que nos últimos meses se aproximou politicamente da Presidente (com quem nem sempre concordou), passou a primeira barreira: a incógnita é saber se, num eventual cenário de segunda volta, a base que sustenta o status quo será suficiente para travar o apelo da mudança.
Apesar de a situação do país ser hoje incomparável à dos primeiros anos do kirchenrismo — na sua versão original de 2002, com Nestor na Presidência — marcados pelo default, pelo desemprego acima dos 20% e metade da população em situação de pobreza, a oposição ataca a alegada incompetência da gestão de Cristina, manifesta no arrefecimento e travão do crescimento dos últimos quatro anos. O discurso moderado de Mauricio Macri parte do reconhecimento das melhorias alcançadas na última década, através de reformas e políticas sociais (que garante são para manter), para contestar o esgotamento do modelo. A sua aposta é na projecção das expectativas dos argentinos, que querem voltar a ver o seu país como a referência na América Latina.