Locarno a escaldar? Sim, mas só fora das salas de cinema
Chegados a meio da edição 2015 do festival, tudo tem andado muito morno. Mas ainda há esperança para a segunda metade do festival
Se unanimidade existe, está claramente do lado dos clássicos: é ver a imprensa internacional a agarrar sofregamente a retrospectiva de Sam Peckinpah que decorre maioritariamente na sala vintage do Ex-Rex, oportunidade rara para descobrir no grande ecrã filmes mais raros ou menos vistos do cineasta como A Balada do Deserto, Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia, ou Assassinos de Elite.
O georgiano Marlen Khutsiev, um dos prémios de carreira deste ano, tem também estado na boca da muita imprensa internacional que teve aqui a primeira verdadeira exposição à sua obra. E não esquecer a reacção apaixonada ao prémio de carreira a Michael Cimino, ainda e sempre figura singular pelo seu aspecto físico, que veio apresentar O Caçador numa das noites longas da Piazza Grande e cimentar a devoção da crítica internacional, amplificada pela contínua ausência de filmes novos. (Cimino, aliás, fez questão de afirmar publicamente a sua própria devoção a Peckinpah.)
O "cineasta maldito" ou "mal-amado" tem sido um dos temas subterrâneos de Locarno este ano, tanto nas retrospectivas como no concurso. Para lá de Peckinpah, cineasta com o qual Hollywood nunca soube bem o que fazer, e de Cimino, realizador que foi literalmente cuspido pelo sistema americano, houve o regresso polarizador de Andrzej Zulawski, cujo Cosmos dividiu opiniões (como se esperava) mas foi recebido de braços abertos. Foi um dos poucos objectos da primeira metade da competição sobre o qual toda a gente tinha uma opinião, positiva ou negativa.
No extremo exactamente oposto, No Home Movie de Chantal Akerman foi singularmente mal recebido, culminando numa conferência de imprensa algo surreal onde só faltou perguntar "porque é que a senhora fez um filme tão aborrecido".
No ponto intermédio esteve o georgiano Otar Iosseliani, cujo Chant d'hiver passou sem deixar rasto, embora seja o seu melhor filme recente (mais próximo do filme que o celebrizou, Os Favoritos da Lua), mas insuficiente para entusiasmar, sobretudo em competição.
(Em aparte, e já que estamos a falar de gente com nome, é inexplicável porque é que o espanhol Jose Luis Guerín foi relegado para a paralela Signs of Life em vez da competição com o seu delicioso L'Accademia delle Muse, um dos melhores filmes que vimos este ano, em Locarno e não só.)
Portanto, chegados exactamente a meio do festival, faltando ainda metade do concurso, ainda só apareceu um "daqueles" filmes que embala toda a gente e que é um candidato óbvio ao Leopardo de Ouro: Bella e Perduta, do italiano Pietro Marcello. Tem sido mais fácil encontrar filmes de que ninguém gosta - como Dark in the White Light de Vimukthi Jayasundara, um sub-Apichatpong pretensioso, ou Heimatland, obra colectiva de dez jovens realizadores helvéticos sobre um potencial apocalipse da federação suíça que parece ter ressoado apenas com os locais.
Ou filmes bons que não caíram em graça (James White, de Josh Mond, com algumas das melhores críticas do festival mas um perfil público estranhamente discreto, ou Te Prometo Anarquía, do mexicano Julio Hernández Cordón, catalogado algo erradamente em nichos queer que não lhe fazem favor nenhum).
É certo que ainda faltam dois dos títulos mais aguardados do festival e do ano, Chevalier da grega Athina Rachel Tsangari, descoberta em 2010 em Veneza com Attenberg, e Right Now, Wrong Then do coreano Hong Sang-soo. (Como dizia alguém na sala de imprensa, "Athina e Hong vão ser os meus salvadores").
Mas é também certo que, ao nível da competição principal, a ideia que tem passado para já é a de um ano algo desinspirado, onde foi preciso procurar muito para encontrar filmes. Mesmo cinematografias geralmente interessantes, como o Irão ou Israel, apareceram com filmes menores (nem Paradise, do expatriado iraniano Sina Ataeian Dena, nem Tikkun, do israelita Avishai Sivan, convenceram).
E na competição de primeiras e segundas obras Cineasti del Presente, tem havido filmes com os seus defensores - a versão moderna e muito livre do Dom Juan de Molière pelo actor Vincent Macaigne, El Movimiento do argentino Benjamín Naishtat, Keeper do francês Guillaume Senez, Siembra dos colombianos Ángela Osorio Rojas e Santiago Lozano Alváres - mas nada que tenha "saltado" como imperdível.
Nos jornais locais, claro, é o desfile de estrelas da Piazza Grande que tem feito as manchetes, sobretudo com a vinda a Locarno da comediante americana "do momento" Amy Schumer para apresentar Descarrilada (que o estúdio apresenta nos cartazes que enchem a cidade como "estreia europeia" apesar do filme já ter entrado em cartaz em vários países), ou Edward Norton, que veio receber um prémio de honra.
Torna-se cada vez mais difícil pensar Locarno, erguido a centro global do cinema de autor, como imune aos longos braços do marketing multinacional - sobretudo quando, caso raríssimo no circuito de festivais "classe A", o filme de abertura (Ricki e os Flash de Jonathan Demme) vem completamente desacompanhado devido à simultaneidade da estreia americana (a sensação é a de um "osso" atirado ao festival por um grande estúdio que não sabe bem o que fazer com um filme que não é fácil de vender).
Sinal de que a escolha da Piazza Grande deste ano era também ela demasiado "morna" - com um grande número de filmes "de prestígio" de co-produção francesa ou suíça que pouco interessa - é o facto do maior número de espectadores registado no espaço-símbolo do festival ter vindo precisamente com os pesos-pesados americanos: Ricki e os Flash (lotação esgotada com 8000 espectadores) e Descarrilada (7000 repartidos pela Piazza Grande e pelo auditório coberto FEVI devido à chuva que se abateu nessa noite e que refrescou a cidade durante tempo insuficiente).
Há, por isso, um certo perfume de festival a meio gás para já, de certame ainda à procura do filme que o defina este ano como Lav Diaz ou Pedro Costa o fizeram em 2014. Mas até ao lavar dos cestos é vindima, e há ainda tempo, e espaço, para surpresas. Cá estaremos para as ver.