A roqueira irredutível abre um festival sem compromissos
Em abertura de Locarno, Ricki e os Flash não é um grande filme, mas a sua história de uma mulher que não se curva ressoa com a dimensão de um festival que recusa os compromissos
Fizera-o na edição 2014, ao insurgir-se contra a manipulação política do convite feito a Roman Polanski para dar uma master class no certame. Volta a fazê-lo no palco da Piazza Grande na noite antes da abertura oficial de 2015, ao apresentar um dos “parceiros” do certame – palavra que prefere a “patrocinador” - e ao reiterar que a direcção artística de Locarno é uma “linha vermelha” para lá da qual não existem ingerências.
Palavras leva-as o vento, poder-se-ia dizer, mas a verdade é que está aí o programa de Locarno 2015 a prová-lo: na noite de terça-feira, um dia antes da cerimónia oficial de inauguração, as oito mil cadeiras de plástico e o écrã de 26 por 14 metros da Piazza Grande, o centro histórico de Locarno, abrem-se ao público em regime de entrada livre para ver O Navio de Federico Fellini. Dois dias antes, no domingo, o “pré-festival” arrancara também com entrada livre, com Duelo na Poeira, de Sam Peckinpah, em antecipação àquela que é a grande retrospectiva desta edição, dedicada ao cineasta de A Quadrilha Selvagem. Nesta tarde de quarta-feira, Edward Norton (galardoado com um prémio de excelência), um dos actores que menos se compromete com as atitudes de Hollywood, apresenta ao público um dos seus filmes-chave, Clube de Combate de David Fincher.
A imensa pequena América
E como nem sempre tudo o que parece é, é só depois de se ver Ricki e os Flash, o novo filme de Jonathan Demme, o autor de O Silêncio dos Inocentes e Filadélfia, com Meryl Streep no papel principal, que se percebe o porquê da sua escolha em abertura oficial na noite de quarta-feira. Para uma estreia mundial, o filme surge estranhamente desamparado; ninguém da equipa ou do elenco se mostrou disponível para fazer a viagem até Locarno, coisa que Carlo Chatrian, director do certame, explica em entrevista ao jornal local Corriere delle Ticino dever-se à agenda promocional imposta pela estreia americana esta semana. É triste mas é verdade nestes tempos em que o marketing tudo controla - a bilheteira impõe-se à arte, já não é de agora - mas a ironia é que Ricki e os Flash é uma tomada de posição: é um filme sobre a integridade, e é por isso que ressoa com as palavras de Marco Solari e com a política de Chatrian.
Ricki, de seu verdadeiro nome Linda, deixou marido e três filhos para trás para perseguir o seu sonho de ser cantora. Não lhe correu muito bem - já passou os 50, e é roqueira em part-time na Califórnia, actuando aos fins-de-semana como residente num barzinho de estrada, de dia é caixa num supermercado. O resto da família seguiu sem ela no Midwest, só que agora a filha está a passar por um divórcio traumático e o seu regresso a casa acorda velhas feridas. Como Ricki diz numa das melhores cenas do filme, quando tem um ataque de nervos em palco, a um homem que é estrela do rock perdoa-se-lhe tudo, a uma mulher não se perdoa nada. E o filme de Jonathan Demme é a luta de uma mulher para ser levada a sério por não ter escolhido o caminho das outras todas.
Se Ricki não fosse Meryl Streep, é provável que o guião de Diablo Cody (Juno) não tivesse sequer tido luz verde dos estúdios. Há que dizer que Ricki e os Flash não dá grande luta, nem à actriz (claro que Streep é excelente, mas nela isso já é normal) nem ao realizador (o início é mole, há demasiados momentos em que o filme parece uma remake disfarçada do Casamento de Rachel). Mas a falta de originalidade do argumento e a sua estrutura preguiçosa é mais que compensada pela justeza do retrato de uma imensa "pequena América" que se desenrasca como pode. Ricki pode não ser convencional (afinal, é uma roqueira que votou em George W. Bush...) mas apenas pede que não sejam condescendentes com ela nem a tratem como atrasada mental, nem que para isso tenha de subir a palco e exigir o respeito que ninguém lhe quer dar. A chave do filme é mesmo essa: Ricki não quer que ninguém lhe dê nada, só não quer que finjam que ela não existe. Isso torna-o um filme dos nossos dias, e fá-lo ressoar de modo peculiar com a escolha de Chatrian para a Piazza Grande na véspera.
O director do festival apresentou O Navio como um filme injustamente subvalorizado – e em que outro local poderíamos ver uma plateia enorme atenta a este Fellini “maldito” de 1983, colossal insucesso à sua estreia que o tempo veio confirmar como um dos seus grandes filmes? Obra onde a sua paixão por Chaplin e a herança do mudo são assumidas integralmente, O Navio é também mistério quase Wellesiano à volta de uma figura pública com o seu quê do Rosebud do Mundo a Seus Pés, e ainda ácida sátira Buñueliana sobre a burguesia sob a forma de uma ópera-bufa Felliniana falsamente nostálgica.
A história do cruzeiro fúnebre que uma elite artística freta em 1914 para cumprir as últimas vontades de uma diva operática lendária é também uma escarninha visão de uma Europa entrópica, à deriva em 1914 como hoje em 2015, sem soluções para a desigualdade. Algumas das suas imagens de malas flutuando em camarotes que se inundam antecipam o Titanic de James Cameron, com uma fracção do orçamento e uma dimensão completamente diferente, mas também com uma espontaneidade e uma alma que o perfeccionismo técnico do canadiano nem sempre consegue equiparar. Mas mesmo 30 anos depois, O Navio parece um filme assustadoramente presciente, que reage com o mundo em que vivemos de modos surpreendentes.
Não se podem forçosamente tirar conclusões a partir daqui; são apenas dois dias, dois filmes, duas sessões, e as leituras que são verdade hoje podem não o ser amanhã. Mas as coincidências estão aí para quem lhes quiser prestar atenção. Locarno abriu portas e a ver vamos por onde o que aí vem vai seguir.