“Cabe-nos dizer hoje que o nosso grande modernista era gay”
Na noite de abertura da 13ª Festa Literária Internacional de Paraty, falou-se de identidade, de erotismo e daquilo que ficou calado em Mário de Andrade.
Ninguém contava, mas quando a sessão de abertura da 13ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) dedicada ao escritor brasileiro Mário de Andrade (1893-1945) estava a aproximar-se do fim e o biógrafo Eduardo Jardim citava o poema Meditação sobre o Tietê, o actor Pascoal da Conceição, que interpretou Mário de Andrade numa mini-série da TV Globo, tirou-lhe as palavras da boca, invadindo o palco, a declamar o resto do poema e a comentar o que estava a achar da sessão. Foi assim uma coisa amadora – o actor vestido de branco, ramo de flores na mão, não tinha microfone e não se ouvia por toda a sala – e deixou surpreendidos quer os participantes, quer o público que assistia à conferência.
O académico Eduardo Jardim dirigindo-se ao curador da FLIP, ali ao lado, ainda pediu ajuda - "Salva a gente aqui, Paulo!". E Paulo Werneck pegou no microfone para explicar que a performance não estava programada: foi “uma surpresa”, mas "fugas ao ‘script’ são bem-vindas, às vezes”. Ainda insistiu para que o autor da primeira biografia dedicada a Mário de Andrade continuasse o seu raciocínio, mas Jardim sentiu-se incapaz. Tinha perdido o fio à meada.
Assim terminou a mesa de abertura da FLIP, que tal como nos anos anteriores está a ser transmitida da Tenda dos Autores para ecrãs espalhados no recinto e também, em streaming, através do site oficial da festa literária.
Antes do episódio que deixou todos sem saber o que fazer, a escritora e crítica literária argentina Beatriz Sarlo tinha mostrado as diferenças entre a geração de modernistas da década de 20 no Brasil, os tais que organizaram a Semana da Arte Moderna em São Paulo, e os modernistas na Argentina entre os quais Jorge Luis Borges. Todos tratavam a questão da identidade nacional (ou da sua falta em países que eram ex-colónias), mas de maneira diferente. “Mário de Andrade fez coisas que não teriam passado pela cabeça de um argentino, a começar pelas investigações de etnografia musical. O tango podia ser uma música para se ouvir, mas nunca interessou como objecto de pesquisa aos homens de Buenos Aires da década de 1920”, disse, acrescentando que para os escritores argentinos daquela época as viagens que Mário de Andrade fez pela Amazónia teriam parecido “um projecto de um maluco”, porque os argentinos não consideravam que a cultura popular fosse algo “digno de interesse.”
Pornografia desorganizada
Esta atracção de Mário de Andrade pela pesquisa do folclore popular também foi referida pela professora de literatura brasileira da Universidade de São Paulo, Eliane Robert Moraes, especialista em literatura erótica, para quem basta ler Macunaíma – O Herói sem Nenhum Carácter para se perceber que a obra comporta “uma erótica tão inesperada quanto intensa”.
A professora universitária lembrou que Andrade recolheu material relacionado com o erotismo “que é um verdadeiro tesouro” e que, se não o tivesse feito, nunca teria chegado até nós. Mário de Andrade gostava de dizer que o Brasil tinha “uma pornografia desorganizada”, dispersa pela “cultura popular, pelas literaturas religiosas, no bumba-meu-boi [uma dança do folclore popular brasileiro], nas modinhas, nas quadrinhas”. No seu livro, Macunaíma, explicou a professora, ele “joga o tempo todo com o proibido, com o que se fala e com o que não se fala". Essa questão, Macunaíma resolve literariamente de forma genial: “Em Macunaíma, o calado é vencido pela artimanha da palavra, e isso marca a erótica de Mário de Andrade”, explicou.
No décimo capítulo desse romance o escritor cria palavras para substituir as palavras buraco ou orifício (por exemplo, botoneira ou puíto). Um expediente, explica a professora, que era uma prática própria da literatura erótica ocidental: substituir uma palavra proibida por outras que a evocam. “O erotismo tornou-se uma faceta na sombra da obra de Mário, pois como a homossexualidade de Mário de Andrade foi muito intocada, ficou escondida, tornou-se uma espécie de tabu, aquilo que na própria obra fala de sexo acabou ficando intocável”, disse Eliane Robert Moraes.
“Chegou o momento, tarde já com certeza, de a gente poder liberar em Mário aquilo que é de ordem pessoal para se poder reconhecer a qualidade daquilo que é de ordem estética”, acrescentou. “Cabe-nos dizer hoje aquilo que ficou tanto tempo proibido, que o nosso grande modernista era gay e que há resquícios dessa homossexualidade em toda a sua obra, muito embora não possamos falar de uma obra gay.”
Entretanto para subsistir o italiano Roberto Saviano, que cancelou a presença na festa por razões de segurança, a FLIP convidou os jornalistas Ioan Grillo e Diego Osorno para falarem numa mesa que se passa a chamar "Jornalismo de guerrilha", no sábado, dia 4 de Julho, às 19h30. Tanto um como outro são especialistas na cobertura da guerra entre os cartéis mexicanos de tráfico de drogas.