“Paraty é o borogodó da FLIP”

O brasileiro Paulo Werneck, curador da FLIP pelo segundo ano consecutivo, revela o que podemos esperar da festa que terá duas autoras portuguesas, Alexandra Lucas Coelho e Matilde Campilho, entre os convidados.

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O editor e tradutor Paulo Werneck é pela segunda vez curador da FLIP Marina Quintanilha

Mais de 40 autores passam pelo evento que este ano homenageia Mário de Andrade (1893- 1945), autor do livro de poesia Pauliceia Desvairada e do romance Macunaíma. Nesta edição, cujo orçamento sofreu um corte de 15% (passou de 8,6 milhões de reais no ano passado para 7,4 milhões de reais), continuará o esforço de democratização da festa, com a colocação de ecrãs ao ar livre onde se transmite, ao vivo e gratuitamente, o que se passa na Tenda dos Autores, cuja entrada é paga.

O editor e tradutor Paulo Werneck, pela segunda vez curador da FLIP, que já se encontra em Paraty, diz que a programação tem mais de “cozinha experimental do que de receita consagrada”, numa entrevista feita a partir do Rio de Janeiro antes da festa começar. O que o cancelamento da participação do escritor Roberto Saviano, a dois dias da festa, por motivos de segurança que o impedem de sair da Europa, só vem confirmar.

A Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) é “um festival de rock praticamente”, como já disse?
Permita-me fazer uma pequena correcção na frase citada. Eu disse que o clima que se viu quando decidimos abolir a Tenda do Telão [entrada paga], abrindo-o ao público, era semelhante ao de um festival de rock, ou seja, você pode fruir um debate entre escritores enquanto toma uma cerveja ou chupa um picolé, abraçado com a namorada. Passam cachorros vadios, o clima é muito diferente do que se vê num auditório, e acho isso saudável. Dá às ideias e à literatura uma fruição menos solene.

Mas é verdade que, em se tratando de rock, neste ano temos entre os convidados Arnaldo Antunes, Karina Buhr e Jorge Mautner, que representam três vertentes do melhor rock brasileiro, isto é, necessariamente impuro, miscigenado, misturado (à poesia concreta, à música pernambucana e à Tropicália, respectivamente).

O que tem a FLIP de tão original e atractivo?
Penso que "o que é que a FLIP tem” é Paraty. Paraty é o borogodó da FLIP. Algo acontece ali que faz com que os autores se abram, o público está disponível, até a meteorologia em geral conspira para que aconteça uma festa solar em todos os sentidos, e momentos grandiosos como foi a mesa do cineasta Eduardo Coutinho em 2013, ou a mesa sobre a ditadura no ano passado, para ficar apenas em exemplos recentes.

Esta é a sua segunda curadoria na FLIP. A maneira de ver o festival mudou com essa responsabilidade?
Este trabalho é um exercício de tiro ao alvo: planeja-se longamente algo que terá uma existência breve e que não se sabe exactamente como será. Olhando para a minha primeira curadoria, saltam aos olhos os erros, os problemas, pois sou um editor, e editores gostam de olhar para os erros. E um editor sempre tem o ímpeto de editar, corrigir, o que não é possível na FLIP. Então limitei-me a evitar repetir os mesmos erros, o que certamente me levará a outros erros.

Mário de Andrade (1893- 1945) é o autor homenageado. Para quem não conhece a sua obra pode explicar que facetas a festa quer mostrar?
Mário foi um intelectual agónico, como definiu a ensaísta Gilda de Melo e Souza, que era prima dele e conheceu profundamente a sua obra e a sua vida. A sua obra está atravessada por tensões, culturais, políticas, sociais, que no fundo são as tensões do Brasil. Ele pôs o Brasil em questão, e a melhor forma de homenageá-lo é pôr a sua obra em questão, pois assim também estaremos interpelando o Brasil e a cultura brasileira.

A sua morte precoce [aos 51 anos] pode ter acentuado esse carácter agónico, ficou como um trauma cultural, um grande luto, embora as suas ideias afinal tenham vingado. Foi multifacetado, múltiplo, "Trezentos, trezentos e cinquenta", como diz um verso seu. Mas também foi único, singular. Isso para mim é um mistério que espero que seja revelado na conferência de encerramento do [académico e músico] José Miguel Wisnik.

A FLIP sofreu um corte de 15% no seu orçamento em relação ao ano passado. O que tiveram de ajustar, em que é que isso se reflectiu?
Momentos de crise política e económica são sempre férteis na área cultural. A trajectória de Mário de Andrade, que em suas múltiplas personalidades foi também um gestor cultural, um formulador de políticas públicas, mostra isso: ele actuou num período de grande instabilidade política no Brasil, os anos 1930, de ascensão do varguismo (Revolução de 1930 e depois o Estado Novo em 1937) [do político Getúlio Vargas], de conflitos de São Paulo com o resto do país, anos que foram complicados também no plano mundial. Mário forneceu respostas a isso, e a poesia brasileira, por exemplo, ganhou um impulso importante nessa época. Precisamos ficar atentos a isso. A Argentina de 2001 mostrou isso, Portugal pós-2008 talvez tenha coisas a nos ensinar. E vamos ficar de olho nos novos poetas gregos.

Como vê esta programação em relação à do ano passado? O que reforçou e o que quis mudar? 
O autor homenageado é um ponto de fuga que de certa forma organiza tudo, mesmo quando não se está falando nele. Foi assim com Millôr, numa FLIP que valorizou o humor e a imprensa alternativa, além do costumeiro e intocável quinhão literário. Com Mário, procuramos destacar algumas facetas importantes de sua produção - pesquisa musical, poesia, políticas culturais - e oferecer novas portas de entrada para sua obra, com enfoques do século XXI - o contexto das vanguardas latino-americanas, a poesia erótica e pornográfica, a biografia que ele enfim ganhou, 70 anos após a sua morte (“Eu sou Trezentos”, de Eduardo Jardim, Edições de Janeiro).

Mas é preciso lembrar que a programação é sempre o resultado de um longo trabalho, com idas e vindas, confirmações e cancelamentos. Tem mais de cozinha experimental que de receita consagrada.

Que temas que vão ser abordados?
Além das questões ligadas a Mário de Andrade, temos uma presença literária importante e variada, com autores da África (Ngugi wa Thiongo), Oceânia (Richard Flanagan), América do Sul (Beatriz Sarlo, Diego Vecchio), diversos países da Europa (Alexandra Lucas Coelho, Matilde Campilho, Sasa Stanisic, Colm Tóibín, David Hare). Há dez poetas lusófonos na FLIP, falando de poesia e de suas relações com as outras artes. Há uma presença baixa, não intencional, de autores norte-americanos: apenas a escritora Ayelet Waldman. Temos dois pesos-pesados que vão falar da batalha cultural que se trava na Europa nos quadrinhos [cartoons]: os cartoonistas franceses Plantu e Riad Sattouf. Há também discussões sobre vida afectiva, sobre o amor e o sexo vistos pela literatura, nas mesas "Amar, verbo transitivo" e "Os Imoraes".

Também se debaterá história e ciência.
Há uma presença forte de historiadores: Boris Fausto, que é uma referência nacional e nunca tinha ido à FLIP, Lilia Schwarcz e Heloisa M. Starling, que recentemente "biografaram" o Brasil [“Brasil - Uma Biografia” editado pela Temas e Debates]. Há duas mesas de ciência, assunto que sempre rende boas conversas na FLIP: uma sobre matemática, com o recém-agraciado com a medalha Fields Artur Ávila, e o russo-americano Edward Frenkel, além de uma mesa sobre neurociência, com o neurocientista Sidarta Ribeiro, dissidente do controverso laboratório de Miguel Nicolelis no Rio Grande do Norte, e o economista e filósofo Eduardo Giannetti.

Como estão a lidar com a notícia do impedimento de Roberto Saviano de viajar para o Brasil a dois dias do início da festa?
O cancelamento era uma possibilidade, sabíamos que cada coisa que Roberto Saviano pretende fazer é decidida três dias antes pelo grupo que cuida de sua segurança. Fico muito mais preocupado com Saviano do que com a FLIP, que tem outros 41 autores - e terá ainda os substitutos de Saviano [que serão anunciados em breve]. Como curador, sempre acho mais importante enfatizarmos as questões, os eixos de discussão, do que presenças individuais. Ao convidar Saviano, a FLIP pretendia trazer um novo ponto de vista para o debate sobre drogas e violência no país. Saviano não vem, mas manteremos a questão do tráfico de drogas e da violência, pois é urgente, relevante, necessária.

O ano passado a festa teve muitas discussões na ordem do dia (vigilância, os índios brasileiros, etc). Este ano conseguiu-se isso?
A discussão que seria feita por Saviano, e que será mantida pelos seus substitutos, é sensível em todos os lugares do mundo, mas especialmente em Paraty: o narcotráfico e toda a criminalidade que vem junto com ele, especialmente mortes, corrupção e degradação urbana. Paraty tem altos índices de violência, uma violência que já não se restringe à periferia. Nesse sentido é uma cidade tipicamente brasileira. A Mesa Zé Kleber, que discute questões de Paraty e levará três poetas formados nas Oficinas de Poesia que um de nossos maiores poetas, Carlito Azevedo, organiza no Complexo do Alemão e nas bibliotecas-parque do Rio, são outro tipo de resposta a esse problema grave.

Da mesma forma, a presença dos cartoonistas mostra como os quadrinhos [cartoons] rapidamente passaram a ocupar o centro da discussão política em todo o mundo. Como acontecia na Rússia do século XIX em relação à poesia, mata-se e morre-se pelos quadrinhos [cartoons], eles deixaram uma posição marginal que ocupavam há 15 anos e se tornaram uma arena política. Não é à toa que Laerte é hoje um dos activistas políticos de mais destaque no Brasil.

Duas autoras portuguesas, Alexandra Lucas Coelho e Matilde Campilho, participam nesta edição. O que espera que elas possam trazer à festa?
Ambas representam uma geração literária que se constitui entre o Brasil e Portugal. Os livros que as trazem a Paraty são tão brasileiros quanto portugueses, o que é uma novidade digna de nota. Mas não foram chamadas por terem um pé no Brasil. São escritoras inteligentíssimas, refinadas, bem-humoradas. Não haveria por que não convidá-las, sabendo que têm livros lançados por aqui.

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