A voz de Amália, agora homenageada, mostrou a Ruben o que é ser português
Pela mão do cineasta Ruben Alves, autor de A Gaiola Dourada, é lançado a 10 de Julho um disco de homenagem a Amália Rodrigues com participações de Camané, Gisela João, Ana Moura, Bonga, Caetano Veloso ou Mayra Andrade. No final do ano, juntar-se-á um documentário sobre o fado.
Mas foi seguramente essa cena do filme a ter levado a Universal França a contactar Ruben Alves com um convite concreto. “Vieram ter comigo a propor-me a direcção artística de um CD de fado, bem feito, de referência e em homenagem a Amália Rodrigues”, conta o realizador ao PÚBLICO, que aceitou na estrita condição de poder concretizar a ideia que entendesse colocar em CD. Amália – As Vozes do Fado é o fruto desse processo – um disco, com lançamento marcado para 10 de Julho, em que se pode ouvir Ana Moura, António Zambujo, Carminho, Camané, Gisela João, Ricardo Ribeiro e Celeste Rodrigues a interpretar temas do reportório da Amália, mas também duetos mais ou menos inesperados destes mesmos fadistas. Assim, Ana Moura cantará com Bonga num tema produzido por Branko (Buraka Som Sistema), Carminho surgirá ao lado de Caetano Veloso, Zambujo partilhará Lisboa Não Sejas Francesa com Mayra Andrade, Ricardo Ribeiro dará voz a um tema espanhol com Javier Limón e Nino de los Reis, e Camané e Gisela João distribuirão entre os dois os versos de Meu Amor, Meu Amor.
Para além da homenagem à grande referência do fado que naturalmente se desenha a partir das interpretações de seis fadistas cuja afirmação se deu já após a morte de Amália (só Camané já então gravava; Celeste Rodrigues, irmã da diva do fado, é uma convidada especial) e que Ruben Alves assume como “uma escolha pessoal”, o disco permite ao realizador nascido em França retribuir uma dádiva dificilmente pagável. “Foi através da voz da Amália que comecei a perceber o que era ser português”, afirma. ”Foi com ela que comecei a ouvir os textos, a interessar-me por quem escreveu, por Pedro Homem de Mello ou Ary dos Santos. Era puto, adolescente em Paris, e foi assim que me aproximei da cultura portuguesa, do meu país de origem.” Claro que no rádio dos pais o fado arranjava sempre maneira de se fazer ouvir e de lembrar o país deixado para trás, mas foi a descoberta de Amália que lhe soou a convite para se aventurar pelas casas de fado adentro nas passagens por Lisboa.
A visita ao parisiense Zénith do musical Amália, de Filipe La Féria, fez o resto. Ruben, que já estava seduzido pela figura da fadista, deixou que o seu lado de cineasta se deslumbrasse também com a imagem magnética de Amália e fosse descobrindo na cantora “a modernidade e a visão desta artista que impôs e revolucionou várias coisas no fado”. “Ainda há pouco tempo li aquilo que a Björk diz da Amália [em Janeiro, a islandesa referiu Amália como uma das suas cantoras de referência em entrevista ao site Pitchfork, apesar de confessadamente não conseguir decifrar as letras]. Eu tenho a sorte de perceber, ainda por cima. Mas esta é daquelas vozes que nos bate mesmo na cara.”
Um percurso de emoções
Sabendo do pudor existente em alguns fadistas em abordar o reportório de Amália Rodrigues, por ser comummente entendido que as suas interpretações estão frequentes vezes no patamar da insuperável perfeição, Ruben Alves revela que, não tendo encontrado resistência nos fadistas, foi-lhe fácil detectar “preocupação e receio”. “Cada um vê como quer”, defende, “mas acho que quando há pessoas que foram tão inspiradoras, temos sempre de alimentar a sua memória. Eu sei encontrar a diferença: quando ponho um disco da Amália, é a Amália que oiço. Mas também gosto de ouvir os outros. E foi por isso que aceitei este projecto, sem pensar nos preconceitos e no que as pessoas iam pensar.”
Foi, aliás, pensando em Amália como uma artista visionária e que nunca se deixou manietar por regras criadas e ditadas por outros que o realizador fez questão de contrariar as proibições que lhe segredavam. Como, por exemplo, a interdição tácita de cantar Grito, um dos mais arrebatadores poemas lavrados pelo próprio punho da fadista. Justamente por não se cantar fez questão de o propor a Ricardo Ribeiro. Mas foi também essa falta de reverência pelas fronteiras que o levou a promover o encontro entre Ana Moura, Bonga e Branko, num tema que vinca o lado da referência maior de Amália para a música em língua portuguesa que pretende imprimir nos duetos, por cima de uma subtil electrónica de travo africano.
A meio do processo de gravações nos Estúdios Valentim de Carvalho, percebendo que não seria capaz de domar o seu impulso de cineasta, Ruben Alves entendeu que as imagens que estava a recolher com o intuito de registar o vulgar making of das gravações sugeriam um outro caminho. “Porque não ir até ao fundo e fazer um documentário?”, questionou-se. Nessa altura, decidiu então mudar de lente. O filme, que se encontra em fase de rodagem e tem exibição já acordada com a TVI para os últimos meses de 2015, concentrar-se-á não na figura de Amália Rodrigues mas numa investigação junto destes “fadistas e das pessoas envolvidas nesta música de como hoje em dia o fado mexe com o povo português.” “Não é um documentário explicativo do fado, mas uma maneira de tentar perceber de uma maneira emocional como surgiu na vida destas pessoas. É, por assim dizer, um percurso de emoções”, classifica, vincando a natureza do fado como música de raiz urbana, procurando perceber como é vivida actualmente num contexto quotidiano, para lá dos palcos, depois de os holofotes se apagarem ou a porta da casa de fado se fechar. É uma busca pelo fado como lugar de intimidade.
Na sequência deste mote de mostrar o fado como expressão urbana, Ruben Alves chamou o street artist Vhils (Alexandre Farto) para assinar a capa do disco Amália – As Vozes do Fado, legando também a Lisboa uma obra com a efígie da fadista que passará a habitar a cidade a partir de 2 de Julho, data do seu descerramento oficial.