Aristides de Sousa Mendes: o sublime que há em nós
Se não dermos honras de Panteão a Aristides de Sousa Mendes, então estamos a assinar a declaração solene da nossa incapacidade de, sequer, ser herdeiros do seu gesto.
Muito se especula em torno do que é a memória. Entre passado e identidade, muito mais se pode pensar sobre a nossa relação com o passado, onde devemos ainda juntar a ideia de património, este cade vez mais imaterial e não material.
Numa revolução mental, onde o primado do material deu lugar aos usos, aos costumes, às tradições, classificamos como património cantares, comidas, paisagens e ritos. O nosso património, aquilo a que olhamos enquanto memória, é uma teia complexa em que nos revemos, nos identificamos, ao qual chamamos de nosso, com o que mantemos afinidades. No limite, classificamos para não perder, para chamar à atenção, para valorizar, para cuidar e para dar valor.
Há pouco mais de setenta anos, um cônsul, um representante de um país a que chamamos Portugal, foi contra as ordens dos seus superiores hierárquicos e, com esse gesto de rebeldia, salvou possivelmente umas trinta mil pessoas – discute-se o número, mas isso é o que menos importa: foram muitas. Perdeu a carreira, teve de pedir ajuda para sobreviver, foi proscrito. Mas nunca se arrependeu do gesto que fez.
A justificação legalista para a punição a que foi sujeito colhe adeptos em quem não vê no mundo mais que impressos, requerimentos e formulários, onde a burocracia delimita a razão e, acima de tudo, os comportamentos éticos. A hierarquia, mediada pelo papel, não é um meio para administrar, mas sim um fim em si.
Ao contrário dessa mole que somos nós, aqueles que passamos pela vida sem heroicidade, Aristides de Sousa Mendes, usou de uma faculdade humana que talvez seja a que melhor nos devia definir enquanto espécie. Aristides usou a consciência e não conseguiu suportar uma imposição legal que ia contra um imperativo que, no fundo, era mais que ético, era de espécie. Aristides estava ciente das consequências do seu acto e, mesmo assim, fê-lo.
Hoje, nos corpus legais contemporâneos marcados pelo primado do cidadão e não do papel, o cidadão tem o direito a não cumprir ordens se elas violarem os princípios fundamentais da dignidade humana. Hoje, setenta anos após Aristides de Sousa Mendes ter optado em consciência, já aprendemos que esse gesto do pensamento está acima de todas as ordens e hierarquias. Hoje, um “Aristides-Sousa-Mendes” não seria punido se, agindo contra um seu superior, tivesse salvo vidas.
A grande questão que se nos coloca é o que fazer com essa memória. Integrá-la como património imaterial de Portugal? Ou continuar, de homenagem em homenagem, a não reconhecer a máxima e sublime acção que um de nós fez em prole da humanidade? Dia 17 de Junho é o Dia da Consciência, em memória do seu acto. Mais uma vez nada vamos fazer que se possa equiparar à dimensão que por trás de um gesto uma figura representa.
Se somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos, como diz Shakespeare, então somos todos Aristides. Não porque sejamos capazes da abnegação, do gesto de plena fraternidade que é olhar para o semelhante totalmente desconhecido e dar por ele tudo o que se daria por um familiar. Não, somos todos despreocupadamente muito ocupados para pensar assim. Mas porque, incapazes de gestos largos, de visões de futuro, de esperança e de utopia, se não forem as figuras como Aristides Sousa Mendes, então somos um pleno vazio que se esvai e se esgota nos debates televisivos depois dos jogos de futebol.
Ora, eu acredito que queremos ser mais que isso. Pelo menos queremos ser o receptáculo de uma memória que nos guia como meta de imperativos éticos, de princípios que, mesmo para quem de nós nunca foi confrontado com grandes opções como a de Aristides, a de salvar milhares de vidas, nos tocam, nos remetem para o sublime que há em cada um de nós.
Se não dermos honras de Panteão a Aristides de Sousa Mendes, então estamos a assinar a declaração solene da nossa incapacidade de, sequer, ser herdeiros do seu gesto. Incapazes de heroicidades, declaramo-nos incapazes de reconhecer a sua dimensão única e de inspiração?
A opção é apenas nossa no quadro da identidade colectiva: ou elevamos, de uma vez por todas, a nossa voz em reconhecimento, ou continuamos a remeter-nos a uma imensa cobardia.
Dir. área de Ciência das Religiões na Un. Lusófona