Cocktail genético permitiu gerar células sensoriais do ouvido interno
Equipa com liderança portuguesa encontrou uma "receita" para criar artificialmente estas células que poderá abrir o caminho a futuros tratamentos de uma forma de surdez que afecta milhões de pessoas no mundo.
Já foi possível produzir células ciliadas no laboratório, mas através de um procedimento complexo e de baixo rendimento. Agora, esta situação poderá vir a mudar: uma equipa internacional de cientistas, liderada por um biólogo português especialista do desenvolvimento, conseguiu produzir células ciliadas através de uma nova técnica que afirmam ser mais simples e eficiente. Os seus resultados foram publicados na última edição da revista Development.
As células ciliadas têm a particularidade de ser capazes de transformar as vibrações sonoras em sinais electroquímicos que a seguir são transmitidos ao cérebro pelo nervo auditivo e interpretados como sons. Podem ficar danificadas por muitas razões, que vão da exposição prolongada a ruído intenso, febres altas, certos vírus, alguns medicamentos – e, simplesmente, o natural processo de envelhecimento.
Por isso, milhões de pessoas no mundo estão mais ou menos gravemente incapacitadas do ponto de vista auditivo. Ora, se se conseguisse fabricar artificialmente estas células em grandes quantidades, os especialistas vislumbram que seria então possível desenvolver um dia técnicas de transplante celular para tratar este tipo de surdez.
A equipa de Domingos Henrique, do Instituto de Medicina Molecular de Lisboa, cujo laboratório está associado à Fundação Champalimaud, e colegas do University College de Londres (Reino Unido) decidiram experimentar uma nova estratégia para tentar gerar estas células no laboratório.
Segundo explicam estes cientistas no seu artigo, só se conhecem actualmente três proteínas reguladoras da actividade dos genes (o nome técnico é “factores de transcrição”) que são indispensáveis à formação das células ciliadas durante o desenvolvimento embrionário. E o que fizeram foi, numa primeira fase, pegar em células de embriões de ratinho capazes de dar origem a todos os tecidos do organismo e induzi-las a produzir, in vitro, esses três factores de transcrição (designados Atoh1, Gfi1 e Pou4f3). Se este cocktail funcionasse, as células embrionárias deveriam então originar células ciliadas do ouvido interno. Foi precisamente isso que aconteceu.
“Inserimos os três genes que codificam [esses] factores de transcrição em células estaminais embrionárias de ratinho e deixámos as células começarem a diferenciar-se”, disse ao PÚBLICO Domingos Henrique. “E mais de 70% das células converteram-se directamente em células ciliadas”.
Só com o Atoh1, as células diferenciam-se unicamente em neurónios, acrescenta, enquanto na presença dos três factores de transcrição “quase não aparecem neurónios”. Isto sugere fortemente que este cocktail “programa” as células embrionárias especificamente para se transformarem em células ciliadas.
A seguir, explica ainda Domingos Henrique, “o que fizemos foi tentar que essas células ciliadas avançassem mais na diferenciação in vitro – isto é, que acabassem o processo de morfogénese [formação] dos cílios, pois são estas estruturas que são a base de funcionamento das células ciliadas no ouvido”. Mas nesta segunda fase, ainda não foi possível obter “um processo de diferenciação final perfeito”, frisa.
A equipa quis ir mais longe, tentando por último ver o que aconteceria in vivo. “Fizemos a mesma manipulação genética em embriões de galinha, no tecido que dá origem ao ouvido. E as células no ouvido do embrião de galinha em que forçámos a expressão dos três factores de transcrição diferenciaram-se todas em células ciliadas idênticas às normais que lá estão.”
Mais: até surgiram células ciliadas em zonas onde normalmente não se formam. A combinação dos três factores de transcrição “é assim capaz de impor um programa de diferenciação em células ciliadas a células que não estavam programadas para isso”, conclui Domingos Henrique.
O próximo passo consistirá em produzir in vitro células ciliadas totalmente maturas e, a seguir, em aplicar esta estratégia a células humanas em cultura. “A produção de grandes números de células ciliadas irá permitir a selecção de compostos capazes de promover a regeneração celular”, explicam Domingos Henrique e a sua co-autora Aida Costa em comunicado da Fundação Champalimaud. “E a longo prazo, estas células também poderão ser um ponto de partida para desenvolver terapias de substituição destas células, com o objectivo final de restaurar as células ciliadas perdidas ou danificadas do ouvido interno”, concluem.