Um festival com vários festivais lá dentro
Passado à parte, também há presente e futuro nesta edição do NOS Primavera Sound. Um guia para o que está a acontecer agora, de FKA Twigs a Jungle, de Run The Jewels a Caribou.
No terreno dos consagrados estão ainda os americanos Interpol, uma das bandas que sobreviveram àquilo que, no início dos anos 2000, parecia o renascimento do rock. A peculiaridade dos nova-iorquinos sempre residiu na forma enxuta como criam canções rock com alguma solenidade. Não o fazem em bruto, mas sim condensando sensações e organizando-as de forma rigorosa. É essa a razão da sua individualidade. O mínimo de movimentos é capaz de gerar o máximo de eficácia emocional. É provável que os americanos já não tenham a mesma aura desses tempos, mas os indefectíveis continuam a ser muitos. O mesmo se poderia aplicar aos escoceses Belle & Sebastian, venerável instituição pop que vem apresentar o novo álbum, Girls In Peacetime Want To Dance, embora no seu caso, independentemente da actualidade, o que conta é uma relação de grande confiança construída ao longo dos anos com os fãs.
Antony e os seus Johnsons não têm um novo disco para defender, mas não será esse facto que os impedirá de conquistar um público que já sabe ao que vai. Ou seja, assistirá a momentos de grande expressividade emocional, até porque Antony afirmou-se ao longo da última década com uma linguagem assente na voz, no piano e na sumptuosidade dos arranjos. Há quem ache que a sua voz respira tanto melhor quanto mais esquelético é o edifício sónico que a envolve, embora no Porto até possa ser acompanhado por orquestra.
Mas também há muita música nova, alguma a chegar em primeira mão a Portugal, nas entrelinhas desta edição do festival. Do leque de figuras que deram nas vistas no último ano e que estarão presentes no Porto, destaque para a inglesa FKA Twigs, autora do álbum LP1. Vimo-la em palco há semanas e é difícil projectar o que acontecerá à sua música em contexto de festival, mas uma coisa é certa: nunca será um concerto consensual. Ouvindo a sua pop futurista, percebe-se que um espectáculo seu não pode ser um espectáculo vulgar. Mais do que um concerto, é uma experiência de dança imersiva, ou uma performance artística hipnótica, com bailarinos, músicos e cenário a instituirem um ambiente misterioso. É como se o imaginário de muitos dos seus vídeos, com formas fluídas pós-humanas, fosse transportada para palco através de gestos teatrais, voz sensual, baixos subsónicos e batidas lentas.
Quem também vingou no ano passado foram os ingleses Jungle e os americanos Run The Jewels. Os primeiros são um duo que se alarga para sete membros ao vivo, expondo uma sonoridade soul-funk personalizada, com tanto de fervor à flor da pele como de contenção, sendo capaz de evocar o passado da música popular sem ficar presa a qualquer nomenclatura. Já os segundos constituem um projecto de dois nomes firmados do hip-hop (El P e Killer Mike). No ano passado editaram RTJ2, segundo volume do percurso iniciado enquanto duo, e as listas dos melhores discos do ano de muitas publicações por esse mundo fora acolheram-nos. Não era previsível. O seu hip-hop é denso e as rimas abrem-nos a porta do mundo contemporâneo, a partir de uma perspectiva convulsa e paranóica. Se em 2014 o Porto se balançou ao som de Kendrick Lamar, este pode ser o ano dos Run The Jewels.
O canadiano Dan Snaith, ou seja Caribou, vem mostrar o seu último álbum, Our Love (2004), e quem já o viu ao vivo com o seu naipe de músicos sabe que nas suas mãos a pop electrónica ganha contornos psicadélicos ainda mais visíveis, em longas sessões hipnóticas onde existe espaço para o sentido lúdico e para rituais de experimentação com doses de fisicalidade.
Também do Canadá virão os Viet Cong, uma das revelações do presente ano, com uma música rock efervescente que não recusa a veia de transmissão do pós-punk, mas que não fica amarrada a ela no álbum homónimo de estreia. Possuem alguma da impetuosidade do punk, expondo uma tensão colérica à beira do apocalipse, mas com inteligibilidade e sentido de comunicação. Há grito. Mas é um grito com sentido.
Para visões mais singulares – ou excêntricas, conforme as interpretações – do cancioneiro indie actual, será obrigatório mergulhar nos concertos do canadiano Mac DeMarco e do americano Ariel Pink, garantia de psicadelismos, neuroses e iconoclastia diversa, à volta da música das últimas décadas. Nem sempre funciona, dizem uns. Quando funciona é em cheio, dizem outros. Em palco todas as ilações serão tiradas, até porque o NOS Primavera Sound é o tipo de festival que permite que cada um construa o seu itinerário de escolhas.