Tim Roth toma conta de doentes, Hou Hsiao-Hsien é recebido em triunfo e Apichatpong vela por nós
Em contagem decrescente para a atribuição do Palmarés do Festival de Cinema de Cannes.
Depois de Franco ter recebido o Prémio Un Certain Regard, em 2012, com Después de Lucía, onde conheceu Tim Roth que presidia ao júri dessa secção e que não foi parco em elogios ao filme, o cineasta viu-se agora promovido à competição de Cannes. Não facilita: passamos Chronic a tentar recompor os pedaços da existência de Roth, figura que se completa emocionalmente com as vidas dos outros – como as personagens, em manobras de substituição afectiva, de Alps (2011), do grego Yorgo Lanthimos, e como em The Lobster, do mesmo Lanthimos, que nesta edição compete com Franco para o Palmarés.
Esta “promoção” do mexicano não é uma clara superação: tentar deslindar o enigma Roth não faz crescer o filme, embora agarre o espectador à curiosidade, colocando-o na posição de admiração intrigada. Dito de outra forma: tal como no caso do enfermeiro interpretado por Tim Roth, a meticulosidade e o labor de Michel Franco não garantem vida autónoma a Chronic.
Sobre as manobras que se desenrolam no escuro de uma sala de cinema, sobre as barreiras que se constroem ou, pelo contrário, se volatilizam, Apichatpong Weerasethakul é sábio. Cemetery of Splendour chama-se a longa que fez a seguir a O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores, a Palma de Ouro de Cannes 2010.
Alguma tinta correu sobre o facto, algo inédito, de um vencedor do prémio máximo do festival ter sido “despromovido” na longa-metragem seguinte - Cemetery of Splendour foi exibido em Un Certain Regard. Se isso afectou Apichapong, a verdade é que na apresentação do seu filme ele disse-se feliz por estar numa secção que dá espaço a renovadas formas de experimentar o cinema. Se foi uma bofetada de luva branca aos programadores só ele sabe, e eles tê-lo-ão entendido. Mas a verdade de Cemetery of Splendour é essa: fornecer experiências ao espectador, continuar a caminhar para o apuramento dos sentidos. Não como quem descobre coisas “novas”. Como quem deixa que se revelem coisas antigas.
Não há nada de especialmente diferente neste filme do tailandês em relação aos anteriores. A matéria continua a ser as camadas de vivências sobrepostas, os sonhos e a chamada vida real com o mesmo estatuto – mas têm sido notados uma narrativa mais linear e o início da colaboração com um novo director de fotografia, Diego Garcia, porque o habitual Sayombhu Mukdeeprom esteve ocupado a filmar As Mil e uma Noites de Miguel Gomes.
As várias vidas que se vivem em Cemetery of Splendour acontecem na terra onde nasceu o realizador, onde os pais exerceram a profissão de médicos, onde ele frequentou a escola, onde descobriu o cinema. É tudo isso junto que faz materializar o hospital deste filme onde um grupo de soldados, acometidos de uma misteriosa doença que os faz cair num sono profundo, estão a ser velados.
São os últimos dias daquela clínica, lugar de outras vidas, porque habita uma antiga escola, e de outras vidas ainda, porque edificada nos restos do esplendor de um mítico palácio – o governo, com um projecto empresarial para o lugar, encheu o terreno de escavadoras.
Nada de radicalmente novo em relação à experiência do cinema de Apichatpong? Não, se se imaginar uma linha a avançar horizontalmente e a acumular. Sim, se estivermos disponíveis para a forma como o cineasta trata de nós, em profundidade: tal como os soldados, somos belos adormecidos, o cinema é cemitério de esplendores, entre o que se passa no ecrã e o que acontece na sala não há diferença de natureza - há momentos de serena evidência neste filme: as vidas que estamos a ver no ecrã são, afinal, as nossas, as dos que estão ali a ver o filme.
Cemetery of Splendour é uma proposta de dissidência. Na apresentação do filme o cineasta foi explícito sobre um momento da sua vida em que a Tailândia é-lhe cada vez mais difícil, social e politicamente, e que só a relação afectiva que mantém e o cinema lhe permitem continuar a viver ali.
É da Ásia que vem um dos títulos que está a gerar entusiasmos de Palma de Ouro: The Assassin, de Hou Hsiao Hsien. Projecto antigo do taiwanês, o de um filme de artes marciais, foi sendo montado financeiramente desde 2005 e foi sendo rodado desde 2010, no intervalo de outros projectos.Chegou, marca o encontro de um cineasta que tem estatuto de lenda viva, premiado em Veneza com o Leão de Ouro por City of Sadness (1989) e com o Prémio de Júri de Cannes a O mestre das Marionetas (1993), com as lendas chinesas.
No século IX, uma rapariga (Shu Qi) é educada nas artes marciais para ser “assassina” e eliminar a corrupção dos governantes. Seria previsível: Hou elimina os corpos e tecidos esvoaçantes, as coreografias sem gravidade, e, tal como Wong Kar-wai com o solipsista Ashes of Time (1994), perverte o género ficando com os pés e com a melancolia no chão.
A recepção tem sido triunfal. O filme mais bonito do festival e de toda a carreira de Hou Hsiao-Hsien, diz-se. Sim, pelo menos desde As Flores de Xangai (1998), a última obra-prima do realizador. É verdade que a afirmação estética é de uma violência extraordinária. Mas esse cume de beleza faz dele objecto razoavelmente opaco e emocionalmente impenetrável: ao contrário do mais difuso, misterioso e indecifrável As Flores de Xangai, The Assassin está ali, olha-se, é-se fulminado pela evidência, não podemos fazer grande coisa para nos perdermos nele.
Do lado francês, os rituais de expectativa em relação ao Palmarés centram-se em Dheephan, de Jacques Audiard, que depois do Grande Prémio do Júri em 2009 com O Profeta, não teve nada em 2012 quando apresentou De Rouille et D’Os.
Mas o filme é algo próximo da desilusão. É verdade que Audiard mantém a experiência do cinema como descoberta assombrada das coisas: o que está em jogo, para as suas personagens, é a construção de um mundo, tomar as rédeas de uma narrativa perdida, a partir do caos, da desordem, da violência. E é assim que filma.
Este é o périplo de um ex-guerrilheiro Tamil que se refugia em França, com falsa família, mulher e filha que na realidade não o são, mas que serviram o propósito de facilitar o refúgio. Fica a trabalhar como porteiro num bairro social dos arredores de Paris – a forma como esse cenário das cités dos subúrbios franceses é mostrado não permite o reconhecimento do já visto, é como se esse mundo estivesse a ser observado pela primeira vez (e está para as personagens; uma delas diz: “parece cinema”).
É nessa nova realidade que o ex-guerrilheiro (Jesuthasan Antonythasan), que procurava diluir-se na normalidade, vai ser, enfim, veículo da violência que está nele, como se reproduzisse uma forca ancestral – o que se começa a anunciar como previsível cedo demais e a prender o filme a um modelo, a gestos mais reconhecíveis, que se reproduzem em vez de ser inventarem.