A competição de Cannes começou fazendo babysitting às zonas de conforto
La Tête Haute, de Emmanuelle Bercot, como alternativa ao modelo de inauguração de um festival foi uma hipótese gorada na 68.ª edição de Cannes: um outro tipo de filme de abertura, sim, mas em tudo um mesmo tipo de filme. E o japonês Hirokau Kore-eda continua na sua zona de conforto.
A atenção, portanto, é para ele, para o adolescente, a quem Catherine (segunda colaboração com a realizadora, depois de Elle s’en va) e Benoit fazem babysitting.
Mas nem neste caso o espectáculo – de violência, de gestos, de gritos adolescentes – é imprevisível. De fura-vidas assim, de mal amados à procura de um lugar, e que não descansam até que, finalmente, podem descansar, está o cinema dos irmãos Dardenne cheio, por exemplo; e são dessa linhagem também as personagens dos filmes do João Salaviza. Há talvez um plano imprevisível, nem é um plano, é um momento, é uma frase, Malony a soprar à personagem de Magimel um “je t’aime”...
La Tête Haute, que abriu a 68.ª Edição de Cannes, e que assim também inaugurou o concurso (é o primeiro dos cinco filmes franceses a mostrar-se), pode ser uma forma menos típica de abrir a competição. Pode ser um perfil menos óbvio para cerimónias inaugurais – sobretudo se os termos de comparação forem O Grande Gatsby e a Grace de Mónaco que fizeram esse serviço em Cannes nos dois últimos anos. E é verdade que é um filme que acredita na (sua) afectividade, sem os cinismos do espectáculo – até porque para o argumento contribuíram acontecimentos e histórias próximas da família da realizadora.
Mas a aposta vincada numa alternativa na abertura, como foi apresentado pelo delegado-geral do festival, Thierry Frémaux, o “caso” de La Tête Haute nesta 68.ª edição, é gorada. La Tête Haute é obviamente uma alternativa a Mad Max: Estrada da Fúria, de George Miller (que vai ser exibido em Cannes no dia do seu lançamento mundial, esta quinta-feira), mas isto se colocamos em duelo dois estereótipos, o do cinema de franchise e o do cinema de autor com preocupações sociais. De outra forma, até estão próximos um do outro por não criarem uma alternativa dentro do modelo em que se encerraram. No caso de La Tête Haute, o que se mostra é que a afectividade não constitui, por si só, a garantia de outro cinema – nem afasta o risco da paródia involuntária, coisa muito injusta para um filme que... acredita. Houve um outro tipo de filme de abertura, sim, nesta edição, mas em tudo foi um mesmo tipo de filme.
O caso do japonês Hirokau Kore-eda começa a ser o mesmo. E Notre Petite Soeur (concurso) começa com uma hipótese de babysitting. Há três irmãs, mulheres adultas, que vivem juntas. Por dever decidem deslocar-se ao funeral do pai, que há mais de uma década as abandonara para criar nova família. No enterro, conhecem uma meia-irmã, adolescente, decidem tomar conta dela, trazê-la para aquela que foi a casa familiar.
Como se sabe dos anteriores filmes de Kore-eda, o jogo entre crianças e adultos é feito da inversão de papéis, da mesma forma que a comédia é apenas a inversão do drama. Através da presença da adolescente o filme vai revelar as mágoas de uma família, ou do que resta dela e que fixou nos rituais (a comida, por exemplo) uma hipótese de consolo e de memória – há uma mãe que regressa, aquela que no seguimento do abandono do marido deixara igualmente as suas filhas. Não se pode dizer que seja altamente imprevisível. Notre Petite Soeur podia ser, aliás, uma continuação de Nobody Knows, de 2003: as crianças abandonadas vários anos depois, a mesma vertigem de um abismo profundo em que as personagens se conseguem equilibrar...
A forma como Kore-eda nos leva a aproximar-nos das feridas das personagens é uma descoberta sempre subtil. Mas é uma música conhecida, que o cinema do japonês já fez a sua zona de conforto, sem procurar outra alternativa – sem se procurar.