Paulo Rocha, visível
A apresentação destes três filmes do cineasta é acontecimento do máximo relevo, e Se Fosse Ladrão… Roubava é uma obra ímpar e portentosa.
Basta, evidentemente, citar apenas Os Verdes Anos, anúncio de um “novo cinema” em Portugal, a partir do qual nada foi como dantes, para termos presente a importância histórica decisiva de Rocha. Contudo, e como na altura da sua morte, em Dezembro de 2012, Jorge Mourinha assinalou no PÚBLICO, ele tinha largamente a condição de “cineasta invisível”.
Não que os seus filmes, as suas longas-metragens de ficção, não tivessem sido todos estreados, mesmo que alguns tardiamente. Mas a possibilidade concreta de aceder à sua revisão, ou tão simplesmente descoberta, essa não existia, e só agora, com esta operação da Midas Filmes, se abrem outros horizontes.
Mas o que é isso de “cineasta invisível”? Efectivamente, os seus filmes não estavam trancados numa gaveta a sete chaves, mas, exceptuando passagens na Cinemateca, era escassa ou quase nenhuma a possibilidade de a eles aceder, já que, sejamos claros, a “vida dos filmes” prossegue hoje por meio das edições em DVD, e esse é um facto incontornável. Ora, nem um só filme de Paulo Rocha está editado nesse formato!
Esta situação de “invisibilidade” não é exclusiva de Rocha, note-se. Basta referir o caso clamoroso dos filmes de António Reis/ Margarida Cordeiro, ou que largamente se justifica também a edição em DVD dos filmes de António Campos. Mas mais: apesar de duas volumosas caixas, não existem em DVD os filmes de Manoel Oliveira (de Oliveira, pasme-se!) anteriores a Francisca (e, entre os posteriores, Le Soulier de Satin nunca esteve disponível em Portugal), com a excepção de Aniki-Bóbó. Isto é, não há obras tão cruciais como Douro, Faina Fluvial, O Acto da Primavera, A Caça, Benilde ou a Virgem-Mãe ou Amor de Perdição!
Esta situação, gravosa e deprimente, só tem uma possibilidade de solução: a realização de cópias digitais restauradas por parte da Cinemateca Portuguesa, e a sua associação, em termos de estreia ou reposição e de edição videográfica, a distribuidoras particulares.
Acontece que na Cinemateca Portuguesa impera, ou imperou longamente, uma concepção algo “fundamentalista” da conservação em película, isto é, do analógico. Até há razões, e importantes, para que a Cinemateca continue a ocupar-se ciosamente do analógico, já que os seus laboratórios de preservação das obras em película e de restauro são dos poucos que ainda existem internacionalmente, e aliás como tal são por justificadas razões reputados. Mas por muito importante que seja a possibilidade de ainda continuarmos a ver filmes em película, a realidade, inelutável, é não só que a esmagadora maioria das obras cinematográficas é hoje de feitura digital, como que praticamente já não há salas com projecção em película, substituida por equipamentos digitais.
Como são possíveis então a concreta difusão e a “vida” dos filmes sem meios digitais? Como é possível disponibilizar uma concreta “memória da arte cinematográfica” e dos seus “clássicos” sem cópias digitais? Ora a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema não tem sido ao longo dos anos e, insisto, por perene concepção, “portuguesa”, mas tão só de Lisboa – e como tal não tem cumprido uma parte das atribuições que lhe cabem enquanto entidade pública. E é uma instituição museológica, no melhor mas também no pior e mumificado sentido do termo.
De certa maneira, foi mesmo preciso que houvesse estes três concretos filmes de Paulo Rocha para que se começasse a operar uma mudança que se espera decisiva – a apresentação na Cinemateca de Se Fosse Ladrão… Roubava foi a primeira aí feita em DCP, digital compact package, uma espécie de pen, como as dos computadores, com os ficheiros dos filmes, formato que é o mais frequente hoje nas salas de cinema.
Que tal ocorra agora não é nada fortuito, porque Se Fosse Ladrão… Roubava é um filme espantoso, que desde a sua concepção é digital. Não há mesmo – e isto não é figura de retórica – nenhum outro filme assim, que, sendo a história do pai do realizador, é também um regresso aos locais de eleição do cinema de Rocha. Lisboa evidentemente, desde logo a de Os Verdes Anos, o Oriente, e em particular o Japão, de A Ilha dos Amores e A Ilha de Moraes, mas sobretudo o Douro e ainda mais a zona da família do cineasta, a de Ovar, da Gafanha, do Furadouro, a de Mudar de Vida. E obra que é, incrivelmente, uma autobiografia cinematográfica do autor, com uma meticulosa e assombrosa inserção de extractos de quase todos os seus filmes.
Sendo absolutamente ímpar, como nenhum outro filme assim há, Se Fosse Ladrão… Roubava, tem contudo de algum modo, em termos conceptuais, um precedente, Máscara de Aço Contra Abismo Azul (1988), sobre Amadeo de Souza Cardoso – um dos filmes menos conhecidos de Rocha. Ao abordar a vida e a obra do pintor, o realizador afirmava explicitamente uma filiação modernista e um método de collage. E este é um daqueles filmes que “não deixa de crescer” com o tempo.
Ora, para além da importância em si mesma de poder ver de novo os “imaculados” Os Verdes Anos e Mudar de Vida, Se Fosse Ladrão… Roubava retoma processos de associação e colagem que remontam a Máscara de Aço..., e ilumina (o termo é precisamente esse, o de uma iluminação) de modo surpreendente a obra de Rocha no seu conjunto e os seus mais secretos laços – e mesmo nos primeiros filmes, de abordagem do real, ele nunca foi, ao contrário do que pode aparentar, um cineasta da transparência, mas sempre também de secretas motivações.
A apresentação destes três filmes de Paulo Rocha é acontecimento do máximo relevo, e Se Fosse Ladrão… Roubava é uma obra ímpar e portentosa – e por mim tenho que com o píncaro que é a Francisca, de Oliveira, mais Uma Abelha na Chuva, de Fernando Lopes, e Trás-Os-Montes, de Reis/Cordeiro, este é um dos raros filmes portugueses que são, sem dúvida, obras-primas de todo o cinema.