Provas, Exorcismos: o filme e quem o trabalha
Provas, Exorcismos, de Susana Nobre, é uma belíssima curta-metragem na Quinzena dos Realizadores de Cannes. Por que é que trabalhamos?
Depois de Vida Activa (2014), Susana Nobre aventura-se para o “desconhecido”. A palavra é dela, mas aproveitamos já os seus sentidos. Porque depois de Vida Activa, documentário que resultou do trabalho da realizadora – cinco anos – no programa educativo Novas Oportunidades, no Centro de Formação Profissional de Alverca, onde foi profissional de reconhecimento e validação de competências de adultos que haviam deixado a escola cedo, ficou um património humano em suspenso: o programa encerrou. As imagens finais deixavam a longa-metragem nessa suspensão. O que fazer com o arquivo daquelas histórias e daquelas vidas? Provas, Exorcismos, que vai estar na secção Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, é uma hipótese de resposta: a ficção. E é belíssimo.
“Quando acabei o meu trabalho ali”, diz Susana, “fiquei com uma enorme vontade de fazer uma série de filmes ao mesmo tempo, e com uma série de perguntas, e com as narrativas das pessoas que conheci... Estou ainda nessa zona, de fazer decisões. Este filme ainda foi escrito na altura em que estava a trabalhar no programa” – onde conheceu Oscar, que se transformou em personagem em Provas, Exorcismos, o filme com que a realizadora regressa ao local do crime. “Este é o primeiro filme a ser feito a partir da constelação de afinidades que resultou daquela experiência de cinco anos e a partir do próprio Vida Activa”.
O documentário deu-lhe vontade de ficção, uma forma “mais elíptica” e que afasta o fantasma que Susana Nobre não quer ver materializado, o de cineasta “do social”. “É claro que o cinema dá conta do seu tempo, do tempo em que é feito. Mas a experiência de Provas, Exorcismos é a do desconhecido. É mais importante o que nos escapa, juntar coisas muito improváveis”. Por exemplo, a vida de Oscar, 48 anos, há 25 a trabalhar na mesma fábrica e continuando a repetir os gestos no momento em que a produção e os salários estão suspensos; trabalha todos os dias, enquanto o tribunal não decide sobre a insolvência da empresa – Oscar neste filme “brinca” a si próprio, joga o jogo da ficção, tem até uma filha que na realidade é a filha da realizadora.
Há isso e há a história de um quadro na capela da Igreja Matriz de Alhandra, uma forma serena de Calvário, harmoniosa, com os rostos a aceitarem serenamente o sofrimento porque confiantes na ressurreição de Cristo. Esta aceitação, figurada e explicitada nesta explicação de um quadro que acontece a meio do filme, eleva a história de Oscar, suspende-a da abordagem social, deixa-a ser penetrada por uma surpreendente religiosidade - e uma enorme ambiguidade – Oscar, como todas as outras personagens, são figuras serenas e que aceitam; no chamamento de que Kafka falava n’O Castelo, as pessoas obedecem a estranhas ordens, longínquas e ocultas.
“Acho que sim, que o filme pode ter um sentido religioso, isso do amor à vida independentemente dos obstáculos. Mas a ideia de que o equilíbrio das coisas é reencontrado [pela personagem de Oscar] com a ida para outra fábrica também me assusta um pouco”, confessa Susana. Que se confessa, igualmente, sem vontade de fixar certezas na sua ficção, de fazer tese. “Este filme talvez tenha a ver com a ideia de que o trabalho é algo que se vai vestindo de sítio para sítio, sem que isso seja um alicerce produtivo. É qualquer coisa que nos domina – afinal são oito horas por dia. Mas não sei se é no trabalho que encontramos a realização da nossa vida.”