A arte da procrastinação
Vejo à minha volta cada mais gente dependente de aplicações, as vulgares apps, para computador ou iPhone. Há-as para todos os gostos. Deixar de fumar. Perder peso. Organizar as finanças. Iniciar relacionamentos. E até existem aplicações que servem para ocultar outras aplicações. Enfim, todo um mundo.
Há dias, no café, uma neta tentava explicar à avó o que eram aplicações de encontros e relacionamentos, enquanto esta se indignava, alegando que a sua geração tinha lutado pela liberdade de escolha dos namorados, sem qualquer interferência dos pais, e agora parecia-lhe estranho que os mais novos confiassem em algoritmos para dessa forma decidirem com quem se encontram.
Talvez seja exagero, mas não deixa de ter alguma razão. Há quem acredite em Deus. Ou nos telejornais. Mas hoje em dia nada parece bater a fé na tecnologia. Sofremos de tecno-triunfalismo. Achamos que a tecnologia resolve tudo. Parece-nos mais provável ir viver para Marte do que assegurar um serviço de saúde de qualidade para todos.
Há dias, um amigo, disse-me eufórico que existia uma nova aplicação no mercado que iria constituir a solução para o seu problema de procrastinação. Respondi que não fazia ideia do que estava a falar, mas ele lá me foi transmitindo que tinha o hábito de adiar o inadiável, deixar para amanhã o que podia fazer depois de amanhã, e que a nova tecnologia lhe iria resolver a enorme dificuldade.
Encolhi os ombros. Ajudar, talvez. Resolver, com certeza que não. Pelo que percebia um procrastinador tendia a deixar para o fim aquelas coisas que tinha mesmo de fazer, distraindo-se com outras menos importantes mas mais apelativas em certas ocasiões. Por preguiça. Fadiga. Falta de concentração. Ideal de perfeccionismo. Medo de falhar. Ou simples dificuldade com tarefas complexas.
Mais tarde vim a perceber que o que não faltam para aí são aplicações que prometem solucionar a procrastinação. Isso e quase tudo está-se mesmo a ver, partindo sempre da ideia nuclear que o mais funcional é afastar o potencial prevaricador da distracção, coisa difícil nestes tempos onde o ambiente de trabalho feito de computadores aumenta a proximidade com a tentação.
Nada de novo. Adiar ou desistir são dilemas de sempre. Victor Hugo que o diga. Para lidar com a dificuldade utilizava um truque. O escritor francês despia as roupas quando escrevia e depois pedia ao mordomo que as ocultasse, dessa forma ficando sentado a trabalhar, sem ceder à tentação de vagabundear pelas ruas de Paris.
Há coisas que dependem de nós. Da nossa determinação. Do nosso engenho. Da tomada de consciência de nós e da realidade em redor. Mas também há factores que nos são externos e que que nunca controlaremos, por mais tecnologia que tenhamos à mão.
Procuramos a imortalidade. Mas para superar a morte ainda não existem aplicações. A única coisa que há a fazer é ir vivendo o melhor possível com as supostas debilidades. No fim de contas a verdadeira arte da procrastinação, hoje, está em pensar que a tecnologia resolve todos os nossos problemas, num convite para que deixemos de lado o essencial e adoptemos o acessório.
E dessa forma, iludidos, de aplicação em aplicação, lá vamos adiando o inevitável confronto com a realidade.