Cancro colorrectal: a vergonha de falar em fezes pode matar

Associação Europacolon Portugal quer sensibilizar para a necessidade desse fazer o rastreio do cancro colorrectal, que mata 11 portugueses por dia. Mas admite que a comunicação “não é fácil”, porque ninguém acha o assunto “sexy”.

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Rui Gaudêncio

“Talvez devêssemos fazer uma campanha mais ousada, mais chocante. Mas não temos dinheiro para fazer uma coisa desse género. Além disso, temos de atender à mentalidade portuguesa. Lembro-me de um anúncio do Reino Unido, fantástico, que mostrava homens e mulheres a levantarem-se da sanita e a olharem para trás, para dentro dela. Mas, em Portugal, não podemos convidar as pessoas a observarem atentamente as suas fezes – como é reagiriam?”, comenta Vítor Neves, dirigente da Europacolon Portugal.

O presidente daquela associação de apoio ao doente com cancro digestivo tem a convicção de que é por “a comunicação social e sociedade em geral considerarem o recto e o intestino assuntos pouco sexy” que a associação tem “tanta dificuldade em fazer passar a mensagem de forma maciça” – “Vamos conseguindo algum espaço, mas não é fácil”, diz.

Nos últimos dias de Março, a Europacolon decidiu prolongar a campanha que marcou o mês de luta contra o cancro colorrectal até ao fim de Abril. Durante mais 30 dias, quem ligar para o telefone 808 200 199 ou consultar o site da associação obterá informação sobre quais as farmácias a que pode recorrer para fazer a pesquisa de sangue oculto nas fezes. Também lhe será dito que quem tiver entre 50 e 74 anos tem o direito de “exigir aos seus médicos de família” que lhe prescreva este teste. 

“Exigir não é o termo adequado. Mas discutir com o seu médico o assunto sim, claro – tem o direito e deve fazê-lo”, reage Nuno Miranda, coordenador do Plano Nacional para as Doenças Oncológicas. São relativamente frequentes os momentos em que estes dois homens se digladiam.

Há menos de um ano, Nuno Miranda considerou um passo importante a aprovação da norma clínica sobre a prescrição do exame de pesquisa de sangue oculto nas fezes, para a detecção de cancro do intestino, a pessoas sem sintomas da doença com idades entre os 50 e 74 anos. Jorge Neves, pelo contrário, chegou a dizer que avançar com o rastreio oportunístico e não o de base populacional (organizado, por convocatória, de maneira a abranger, toda a população daquela faixa etária, no país) se devia “a falta de vontade política e era um acto “agressivo e criminoso”.

Esta semana, em declarações ao PÚBLICO, Nuno Miranda voltou a frisar que não faria sentido que um esperasse pelo outro e a fazer notar que os projectos-piloto de rastreio de base populacional e o oportunístico já permitem cobrir cerca de 22% da população entre os 50 e os 74 anos. À medida que os primeiros forem crescendo substituirão o segundo, segundo explica.

O coordenador do Plano Nacional para as Doenças Oncológicas frisa que apesar de o rastreio de base populacional estar nos planos oncológicos há mais de dez anos “ele nunca chegou a ser, realmente, planeado, o que está a ser feito neste momento”. “Estabelecemos prioridades – os rastreios do cancro da mama e do colo do útero – mas, ao mesmo tempo, trabalhamos o do cancro colorrectal. Não há qualquer má vontade. Por mim, ele estaria implementado ontem”, disse.

Tanto Nuno Miranda como a actual coordenadora de rastreios da Administração Regional de Saúde do Centro, Fernanda Loureiro, admitem que o grande obstáculo está na dificuldade em garantir a realização das colonoscopias no prazo adequado, em caso de resultado positivo na pesquisa de sangue oculto nas fezes.

Em Abril de 2014, o Ministério da Saúde comprometeu-se a aumentar o número de colonoscopias após a divulgação do caso de uma doente que aguardou mais de um ano num hospital público por este tipo de exame. Passou a comparticipar as colonoscopias com sedação nas unidades privadas com acordos com o Estado e lançou um concurso, que ainda está a decorrer, para aumento das convenções com entidades particulares.

O problema do acesso às colonoscopias, no entanto, está longe de estar resolvido. “Os hospitais estão cheios, trabalham para os seus doentes”, comentou há uma semana o presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, Leopoldo Matos, a propósito de eventuais problemas com aquele concurso, relacionados com o preço proposto por exame e que é inferior ao estabelecido há um ano pela tutela.

Ao mesmo tempo, a procura aumenta. “A população está mais esclarecida e os centros de saúde começam a utilizar os métodos de pesquisa do sangue oculto nas fezes, o que induz cada vez mais exames deste  tipo”, acrescentou Leopoldo Matos.

É neste contexto que o presidente da delegação do Centro da Liga Portuguesa contra o Cancro (LPCC), Carlos Oliveira, concorda com Nuno Miranda; “Temos de saber quando devemos agir e quando devemos abrandar. Não seria ético avançar com o rastreio de base populacional ou fazer uma campanha agressiva de apelo às pessoas para que façam a pesquisa de sangue oculto num momento em que não lhes podemos garantir que têm acesso às colonoscopias”, comentou. A alternativa, diz, “é pressionar o Governo para ir removendo os obstáculos e apostar nas acções de prevenção, no rastreio oportunístico e nos projectos-piloto”.

“E é ético deixar morrer as pessoas?”, indigna-se Jorge Neves. “A situação é revoltante, mas o que cada um tem de perguntar a si mesmo é: 'Não podendo fazer a colonoscopia, gostaria de saber que tinha um resultado positivo numa pesquisa de sangue oculto nas fezes, ainda que isso não significasse que tinha um cancro?'”, sugere Carlos Oliveira.

O dirigente da delegação do Centro da LPCC frisa que não tem medo das reacções a campanhas agressivas e que, no momento certo, as fará. Era presidente nacional da LPCC, há alguns anos, quando publicou cartazes sem pingo de humor, que muitos criticaram precisamente por os consideraram “agressivos e sinistros”. Incluíam um cartaz semelhante ao das funerárias, com fotografias de 11 pessoas com uma tarja negra (tantas quantas as que morrem por dia, em Portugal, devido ao cancro colorrectal) e um espelho que fazia com que a elas se juntasse o rosto de quem lia a mensagem. E esta era: “Não morra de vergonha. Consulte o seu médico e faça um exame de rastreio.”

Projecto-piloto marca passo no Centro
A dificuldade na realização de colonoscopias é o principal motivo de atraso no crescimento do projecto-piloto de rastreio organizado de cancro colorrectal, que arrancou em 2009, afirmou, em declarações ao PÚBLICO, a coordenadora de Rastreios da Administração Regional de Saúde do Centro (ARSC), Fernanda Loureiro. A percentagem de dados inconclusivos é outras das características do programa que, segundo a coordenadora, "crescem de forma lentíssima".

De acordo com os últimos dados publicados, em 2013, e à semelhança do que acontecia em 2012, o programa abrangia 35 dos 77 concelhos da região e apresentava uma taxa de cobertura de 12% da população alvo, pessoas com idades compreendidas entre os 50 e os 70 anos. Dos 391 que fizeram colonoscopias nos hospitais públicos de referência do projecto, 229 (mais de 58%) tiveram resultado positivo, traduzido em adenomas (289), pólipos (29) e adenocarcinomas (seis).

“A taxa de cobertura, de 12%, foi muito inferior à planeada. No entanto, caso se tivesse atingido os 25%, não haveria capacidade hospitalar para a realização de colonoscopias”, pode ler-se no relatório relativo a 2013.

Naquele ano, a taxa de participação daqueles que receberam a convocatória para se apresentarem no centro de saúde e fazerem a pesquisa de sangue oculto nas fezes foi de cerca de 55%, adiantou Fernanda Loureiro. Foram realizados 10.690 testes, dos quais 503 (4,71%) tiveram resultados positivos e 510 (4,8%) foram inconclusivos. Esta percentagem, de acordo com a ARSC, tenderá a baixar com a melhoria das indicações dadas aos utentes na primeira consulta no centro de saúde, sobre a forma correcta de realizarem a recolha, em casa. Fernanda Loureiro disse desconhecer "ainda" o destino dos que não fizeram as colonoscopias, mas admite que uma parte tenha feito o exame no privado e que outra tenha desistido do rastreio.

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