No corpo de Volmir uma comunidade, nos gestos de Lander um maestro

Num programa a dobrar criado pelo Festival Panorama e pela produtora Materiais Diversos, o Centro Cultural de Belém junta Volmir Cordeiro e Lander Patrick num desvendar de duas vozes singulares e urgentes da dança contemporânea brasileira. Um trabalha a marginalidade, o outro orquestra o seu público.

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MARGOT VIDECOQ

Esse tropeção era uma inevitabilidade. Durante uns meses, Inês foi de uma imbatível popularidade no reino da internet brasileira, os seus vídeos disseminaram-se com a mesma facilidade que as suas tiradas e, aos poucos, Volmir foi ficando refém desta imagem de alguém que “pode construir uma visibilidade para se tornar conhecido, aparente, presente”, segundo conta ao Ípsilon a partir de Paris. Mas interessava-lhe igualmente “trabalhar a exposição no sentido oposto, no sentido em que se expondo a gente também se está expondo ao ridículo”. Foi então que Volmir, como o próprio anuncia, quis engolir Inês. Mas não é certo, ao ver Inês, quem engoliu quem.

Inês prolonga no trajecto a solo de Volmir aquilo que o bailarino foi explorando enquanto bailarino da companhia de Lia Rodrigues, quando trabalhou com a coreógrafa na Favela da Maré, Rio de Janeiro. Com ela, diz ter aprendido a lição fundamental de que “a arte começa onde você já está”. “Claro que nesse caso estava num contexto específico, a Maré, em que a gente fala de marginalidade e pobreza e a imagem está presente. Mas isso contribuiu para entender que a arte e a dança são um meio muito pequeno e restrito, e que acabamos por apresentar esse trabalho entre nós. Esse ‘entre nós’ é muito asqueroso para mim. Não lido bem com essa dificuldade da dança em tocar outro tipo de corpo e outras esferas sociais, em aparecer para outros públicos.” Além desse manancial artístico vindo de uma dança com um lastro social, Lia Rodrigues ofereceu-lhe ainda o conselho de estar atento ao corpo que construía como coreógrafo. Volmir quis então “ver se era possível falar de uma comunidade num único corpo”. Era já assim com a sua primeira criação a solo – simbolicamente, iniciava uma relação com corpos marginais, de prostitutas, mendigos, caipiras e trabalhadores da roça que levava para o Céu.

Céu era Volmir a encarnar todos estes corpos. Tal como Inês é Volmir a confundir-se com o corpo de Inês, mulher, 57 anos, dois filhos, a meio caminho entre prostituta e coreógrafa, buscando uma relação directa com o seu público. Toda essa confusão alimenta o texto arremessado por Volmir para o público, diante dele, “próximo como se fosse o Presidente que falasse com o seu povo, um líder que falasse com a sua aldeia”, mas separado por uma película invisível que faz com que esteja em palco como estaria na televisão, como estaria num vídeo do YouTube. “Entendi aos poucos, durante o processo”, confessa, “que já não estava mais tratando nem da Inês nem de mim, mas de uma mistura bastante profana de nós dois. Peguei no desejo dela de pertencer a um mundo do qual não faz parte e misturei com a forma como ela pensa a dança, a relação com o público de nós dois, quais os slogans máximos em relação à vida e ligados ao sexo, ao povo e à religião. E quis também problematizar o facto de ser um jovem criador e sentir uma pressão enorme ao ser tomado como uma promessa. Voltei-me para uma relação muito primitiva com a arte – a de frustrar ou fascinar”.

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CLARA ANTUNES

Conhecer Volmir e Lander
Foi na forma de interacção com o público que Volmir acabou por colaborar, de facto, com Lander Patrick, também ele coreógrafo brasileiro a residir na Europa, o outro criador que o Festival Panorama e a produtora Materiais Diversos quiseram colocar lado a lado no programa MEET Lander, MEET Volmir que sexta e sábado se apresenta no Centro Cultural de Belém. Em vez de um dueto, os dois preferiram desenvolver dois solos separados que tinham já “em modo de incubadora”, como lhe chama Lander Patrick. Até porque, argumenta Volmir, ambos estão a mapear-se ainda enquanto criadores, “começando e descobrindo um universo só um pouco formado”.

No caso de Lander Patrick, a ideia com que se debatia desde que participara num workshop de sound painting (método de composição em tempo real criado por Walter Thompson nos anos 1970, aplicável a orquestras, companhias de teatro ou dança, grupos multidisciplinares, etc.) prendia-se com uma curiosidade sobre a orquestração do público. Thompson codificou um conjunto de símbolos a que Lander agora recorre, numa pequena amostra, “para que o público não fique do lado de quem observa um grupo de performers”. “Ensino uma parcela desses códigos à assistência e depois brinco com eles, orquestro-os. E eles orquestram-me a mim também, porque a resposta deles vai influenciar tudo o que tinha desenhado para a peça.”

Daí o Arrastão do título da peça que agora estreia: Lander arrasta o público consigo para o centro da criação, ao mesmo tempo que é arrastado pelo modo imprevisível como o público se entrega ao espectáculo. “Por isso é que não consigo escrever coreografia nesta peça, porque a fisicalidade vem dessa maré que me arrasta também”, reforça. A figura do maestro, um modelo de controlo, dirige ao mesmo tempo que prescinde de parte desse controlo, tornando-se dependente das decisões do público em cada momento. O controlo, assim, entra em claro curto-circuito.

A orquestra, na verdade, é uma massa de público a quem são entregues balões negros e a quem é pedido para vergastar tais objectos ritmicamente ou arranhá-los até ao ponto de obsessão em que parecem querer soar aos violinos da cena do chuveiro de Psico, de Hitchcock. “De repente fica uma marcha de balões negros”, diz Lander, assumindo o tom fúnebre e a opção de despistar a tendência natural para uma leitura infantil da sua presença na peça. “Sinto que estou a encaminhar-me para uma direcção mais dura, mais rough, e o espectáculo acaba por ter um sabor agridoce”, continua. “Até porque há uma tensão muito grande para que eles consigam fazer aquilo que lhes é proposto.”

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MARGOT VIDECOQ
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CLARA ANTUNES

Contrariando uma leitura de “ridículo, frágil, redondo, pequenino, colorido”, Lander fala de uma manipulação do objecto balão feita “com facas”. De onde resulta um jogo de contrastes, uma perversidade que se infiltra em Arrastão e traz consigo “toda uma semiótica” a que não vira a cara. “Há o lado festivo, o som, as múltiplas cores, a vibração, o ar a sair e aquele barulho a explodir que parece tiroteio e é carnavalesco.”

Alguém está morrendo
Tout son corps” repete Volmir quando se retira para o fundo do palco e deixa de confrontar na proximidade o público com o seu corpo fundido no de Inês. E, na versão apresentada em França, repete uma e outra vez a palavra “tout” até esta se tornar também o som de um tiroteio. Os disparos sucedem-se e deflagra também uma dúvida que Volmir não sabe desfazer. “Nessa cena, penso em alguém que está morrendo para que uma outra entidade possa aparecer. É o início de uma transição para outra parte do espectáculo. Mas não sei ainda se é a Inês que mata o Volmir ou o Volmir que mata a Inês. E acho que esses tiros também têm muito que ver com matar o público, porque o público contribui para legitimar todo o perigo da visibilidade. O público quer cada vez mais assisti-la, vê-la, publicá-la e difundi-la.” Em resposta, Inês ganha asco, fermenta uma raiva apontada na direcção de quem a observa em segurança.

Inês procura então apagar-se. Deixar de ver para não ser vista. E Volmir cobre os olhos, agora que está no fundo do palco, com fita adesiva. Mas a escuridão vai avançando também sobre a assistência, a luz sugada até Inês/Volmir e espectadores estarem em igualdade de circunstâncias. Como se nesse black out total, a Inês fosse permitido focar-se ainda mais no desejo de pertencer e todo o corpo a empurrasse nesse sentido. “É essa acentuação erótica, escandalosa, permissiva e perversa desse corpo que deseja bastante” e que resta no palco, argumenta Volmir. As luzes apagam-se. Inês já não é vista, o público já não pode partilhá-la. Mas o desejo dela está lá. Tão incandescente quanto antes.

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