Retrato da pornografia infantil em Portugal
Agressores, vítimas, investigadores, legisladores, Judiciária, redes sociais: a Revista 2 foi à procura das várias pontas da rede de pornografia infantil em Portugal.
António sentou-se em frente à televisão. Com o filho João, de nove anos, via um dos telejornais da noite. O pivô apresentou uma e outra peça até chegar à de um homem detido por suspeita de abuso sexual de menores. João tirou bruscamente o comando da televisão das mãos de António. “Pai, não vejas isto!” “Ele nunca tinha feito isso”, lembra António. A criança não explicou a reacção apesar da insistência do pai. Apesar do estranho comportamento, António pensou que João se tinha assustado com a história. Não se falou mais no assunto.
António e a mulher Sofia vivem num bairro na margem sul do Tejo com João e dois outros filhos. A única rapariga entre irmãos já saiu de casa. O casal tem uma vida de dificuldades financeiras, motivadas pelo desemprego de ambos e pelos problemas de saúde de Sofia, agravados por um AVC recente. Também António viria a sofrer de um quando soube o que se passava com João.
A família orgulhava-se da união e da boa disposição que partilham. João sempre foi o mais animado dos seis. Há três anos, mudou. “Na escola, começou a ter comportamentos estranhos. A mãe apanhou-o com uma navalha a ir para a escola. Disse que era para se proteger.” António falou com a professora de João, “um apoio constante” na vida da criança. “Tentámos perceber o que ele teria.”
É preciso recuar até 2008, quando aos cinco anos João começou a passar fins-de-semana e alguns dias de férias com a irmã, que tinha ido morar com o então namorado. A casa da jovem não tinha ainda meios para o pequeno João dormir, mas a criança gostava de passar aqueles dias com a irmã. Por vezes, o namorado da jovem pedia ao pai, José, que vivia em Benfica, se podia ficar com a criança até que as coisas melhorassem na casa do casal. E João começou a ir para a casa de José.
De início João mostrava-se entusiasmado por ir. Não era o único a frequentar a casa. Filhos de vizinhos de José eram presença frequente no apartamento desarrumado e com condições de higiene questionáveis, mas que desafiavam qualquer dúvida perante a animação dos mais pequenos. A disponibilidade do vizinho para cuidar das crianças era agradecida pelas famílias. Além de ficar com os menores, José alimentava-os, dava-lhes banho e em algumas vezes oferecia-lhes dormida. E foi isso que aconteceu com João, ocasionalmente, até Abril de 2010.
“A minha filha telefonou-me um dia a dizer que vinha trazer o menino porque estava a fazer uma birra. Chorava que queria ir para casa dos pais”, recorda Sofia. João nunca explicou porque chorava. A 4 de Setembro de 2012, a Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa anunciava no seu site que o Ministério Público tinha proferido despacho de acusação contra um homem, de 53 anos, pela prática de mais de 7200 crimes de abuso sexual de seis crianças e de mais de 156 mil de pornografia de menores. Os crimes tinham sido cometidos entre 2007 e 2011, com menores com idades inferiores a 14 anos, alguns entre os três e os dez. Entre 2009 e início de 2012, o indivíduo “colocou e divulgou na Internet vários ficheiros e videoclips, que exibiam diversas fotografias, imagens e filmes pornográficos de menores de 14 anos, o que fez a partir do seu endereço de correio electrónico e das páginas de Internet”.
O homem era José, detido em Fevereiro de 2012. António e Sofia terão ouvido falar da detenção em mais um telejornal. Um telefonema da filha fez a ligação entre o homem da notícia e João. A jovem, que entretanto se separara do namorado, contava que “uma coisa terrível” tinha acontecido ao irmão. O ex-namorado tinha-a contactado para lhe dizer que o pai tinha sido detido. Entre as vítimas, estava João, descoberto pelo rapaz entre fotografias e vídeos que o pai fizera, escondidos numa mala que terá escapado aos olhos da polícia nas operações de busca. A violência a que tinha sido sujeito pelo pai durante cinco anos, entre os sete e os 13 anos, continuava décadas depois. Nunca o terá contado à namorada.
“Ficou em estado de choque. Gostava muito do João. Queria falar connosco mas tinha vergonha e medo da nossa reacção. Nunca poderemos culpá-lo nem à nossa filha pelo que aconteceu. Eles não sabiam de nada”, desabafa à Revista 2 António, que não sabia das idas de João para casa de José.
António nunca viu qualquer imagem do filho mas sabe que são centenas. Apanhado o “monstro”, o medo continua. “Neste momento, qualquer um pode ter uma fotografia do João e não se sabe se andam a circular na Internet.” Sofia diz que olhou de relance para uma fotografia exibida em tribunal e que reconheceu o corpo do filho. “Nunca mais fui a mesma. Não tenho alegria e quando sorrio é pelo João”, partilha em lágrimas.
À semelhança de outros casos de pornografia e abuso sexual de menores, José ter-se-á aproveitado das fracas condições económicas dos pais de algumas das crianças para se aproximar dos três rapazes e três raparigas, dois deles com apenas três e quatro anos quando começaram a frequentar a casa de Benfica. Desempregado, mas com jeito para a informática, foi acusado de ter usado conhecimentos técnicos para a “cedência e venda” de filmes e imagens “pela Internet a várias pessoas que com ele contactavam através da Internet e/ou o visitavam na sua residência”, como indica um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de Dezembro de 2013, que indefere um recurso apresentado pela defesa.
Através da venda de material que recolhia na Internet ou que o próprio produzia, José conseguiu ter rendimentos para aliciar os menores com “videojogos e guloseimas”. A pornografia de menores online terá sido a sua principal fonte de rendimento. Tinha contactos no país e na Holanda.
José está actualmente a cumprir uma pena de prisão, por cúmulo jurídico, de 19 anos, no Estabelecimento Prisional da Carregueira, em Sintra. O PÚBLICO fez um pedido de entrevista ao recluso à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), que o indeferiu, por considerar que poderia vir a reforçar “marcas estigmatizantes decorrentes da exposição mediática” e subsequentemente causar “prejuízo” para a reinserção social do recluso.
José está entre os 272 condenados a cumprir pena em Portugal por abuso sexual de menores e os 27 por pornografia de menores, segundo dados da DGRSP. À Revista 2, a direcção-geral indicou que a maioria dos reclusos condenados por crimes de natureza sexual tem entre os 30 e os 49 anos. A maioria encontra-se a cumprir penas de cinco a dez anos de prisão. O Relatório Anual de Segurança Interna de 2013, o mais recente, indica que naquele ano foram detidas 70 pessoas, incluindo três mulheres, por abuso sexual de crianças, o principal tipo de crime sexual registado no país. Surge em terceiro lugar a pornografia de menores, com 11 detenções.
No total, há dois anos, 357 homens e 12 mulheres foram constituídos arguidos por abuso sexual de menores e 36 homens e uma mulher por pornografia de menores. Foram abertos 1227 inquéritos relativos a crimes de abuso sexual de crianças, na sua maioria com idades entre os oito e 13 anos, e 94 outros inquéritos por pornografia de menores.
Para centralizar a gestão da informação e o encaminhamento rápido do inquérito para o Ministério Público dos casos dos crimes sexuais cometidos contra crianças através da Internet e de meios informáticos, a Procuradoria-Geral da República decidiu, em 2013, atribuir a tutela destas investigações ao Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP). Passado mais de um ano dessa tutela, o DCIAP instaurou mais de 195 inquéritos a crimes de pornografia de menores, 87 foram arquivados.
Desde 2007, ano em que o crime de pornografia de menores foi tipificado em Portugal, foram várias as centenas de casos investigados pela Polícia Judiciária. Quando esses casos chegam à Internet, passam para o gabinete de investigação de criminalidade informática da Judiciária, coordenado por Carlos Cabreiro. Falou à Revista 2 atrás da sua secretária nas instalações da Polícia Judiciária (PJ) em Lisboa, onde controla toda a burocracia associada às investigações, desde as iniciadas em território nacional às que começaram noutros países e acabaram por precisar da colaboração da congénere portuguesa. Interpol e Europol fazem parte dos contactos habituais de Carlos Cabreiro e quando se fala em exploração sexual de menores online essa colaboração é frequente.
“As denúncias aumentaram após o caso Casa Pia. Desde que se começou a falar de pornografia infantil, também as pessoas começaram a ter mais apetência para estarem atentas e são vulgares as denúncias de particulares”, indicou o coordenador. Carlos Cabreiro exemplifica ainda com o caso do chefe de um agrupamento de escuteiros de Belém, tornado público em Novembro último. No computador do homem de 31 anos foram encontrados milhares de fotografias e vídeos de pornografia infantil, na maioria de meninas entre os quatro e os dez anos. O caso chegou à Judiciária através da Europol. O homem acabou por se suicidar na prisão. “Se pensarmos que dava aulas em três ou quatro escolas e que de um momento para o outro passaram a existir 700 vítimas possíveis, isso causou um alarme social.” Os telefones da Judiciária não pararam. “Tivemos muitas pessoas a perguntar se os filhos estavam envolvidos no caso.”
A quem se destina?
E quem são estes indivíduos? Quais são as suas histórias? “Eu não lhe chamo doentes, talvez por formação profissional. Há de facto um conjunto de comportamentos que são desviantes mas não consigo chamar-lhes doentes porque verificamos que alguns têm conhecimentos bastantes, muitos deles têm uma vida estável, têm por vezes até um agregado familiar sem qualquer anormalidade”, diz Carlos Cabreiro. A nível nacional, traçar o perfil de um utilizador ou produtor de pornografia infantil podia ser fácil “há dez ou 15 anos”, admite. A suspeita recaía “num qualquer miúdo da informática, um estudante do Técnico”. “A massificação da informática levou a que esse paradigma e esse estereótipo se tivesse diluído. Agora fala-se de um leque alargado de idades, já não é exclusivo de miúdos.”
Cristina Soeiro e Raquel Guerra, investigadoras do Gabinete de Psicologia e Selecção da Escola da Polícia Judiciária, confirmaram isso quando analisaram perfis destes indivíduos, a pedido da Brigada de Criminalidade Informática e Tecnológica da Directoria de Lisboa e Vale do Tejo da PJ. Olharam para os processos de 26 indivíduos, concluídos entre 2009 e 2014, que “produziram, distribuíram, importaram, exportaram, divulgaram, exibiram ou cederam pornografia de menores” e chegaram a características gerais dos agressores online versus offline.
Da amostra analisada, todos homens, portugueses, e com idades entre os 20 e os 69 anos, a maioria era solteira, com habilitações académicas ao nível do secundário e do superior. Em termos profissionais, mais de metade estava activa e os restantes em situação de reforma, desemprego ou a estudar. A maioria vivia em bairros de classe média, mais de 30% com os pais e 11% com a mulher. Perto de 77% era heterossexual e em 61% foram verificadas parafilias como a pedofilia ou o sadismo sexual.
A maioria dos 26 homens justificou a motivação para o uso de pornografia infantil com fantasias sexuais e uma pequena percentagem alegou objectivos exploratórios ou económicos. As autoridades confirmaram em mais de 69% dos indivíduos a posse e partilha de material, sendo que mais de 15% ainda produzia conteúdos. Na totalidade dos indivíduos foram encontrados conteúdos com crianças entre os sete e 11 anos, 73% tinham vítimas entre os 12 e 14, havendo ainda crianças entre os meses de idade e os seis anos em mais de 69%.
Com base nestes dados, as psicólogas dividiram os agressores em três grupos. O grupo em que predominam as fantasias sexuais e parafilias, e o maior (42%), com vítimas entre 0 e seis anos, preferencialmente meninos, em poses eróticas ou de sadismo. Estes agressores têm entre 20 e 30 anos, habilitações ao nível do ensino secundário e um elevado conhecimento informático. Num outro grupo, o misto, que representa 39% dos casos, os agressores fazem uso da Internet para posse e produção de material, incluindo conteúdos de abuso sexual mais grave. As preferências recaem sobre crianças entre 12 e 16 anos, na maioria raparigas. Os agressores, com idades entre os 31 e 50 anos, têm como motivação a fantasia e interesse sexual e económico e têm um historial de crimes sexuais online. No último grupo, o exploratório (19%), os agressores têm 50 ou mais anos, poucos conhecimentos informáticos mas interesse por imagens de nudez ou erotismo sem actividade sexual. Além da posse de material pornográfico, dedicam-se à partilha e comercialização de conteúdos.
No trabalho apresentado em 2014, Cristina Soeiro e Raquel Guerra analisaram fotografias e vídeos através da escala de COPINE, que avalia a severidade das imagens que o suspeito tem em suporte físico ou digital. “Entre os agressores, 90% do material que tinham era de severidade elevada”, concluíram.
Nos indivíduos que utilizavam a Internet como uma ferramenta, o estudo também estabeleceu diferenças. “Uma coisa é usar a Internet para fazer download, partilhar e usar para consumo próprio, para fantasias sexuais, por exemplo. Depois, temos indivíduos que também podem fazer isso mas ainda usam a Internet para contactar miúdos, via chat, via Facebook. Isso já é um perfil diferente. Aqui, ainda temos indivíduos que podem usar a Internet como meio de angariação de vítimas presenciais”, explica Cristina Soeiro.
Nos milhares de imagens visualizadas pelas psicólogas, o erotismo predominou e as raparigas de países de Leste eram em maior número. A polícia deparou-se ainda com situações de crianças fotografadas ao longo dos anos e as mesmas imagens na posse de vários agressores. A violência sobre os menores foi maior e mais sádica nos filmes do que nas fotografias.
O conteúdo, a organização, catalogando o material por sexo e/ou idade ou mesmo pela agressão cometida, “tudo são informações que demonstram o nível de gravidade e tendência que o indivíduo tem para o consumo de pornografia de crianças e para determinar se o indivíduo tem ou não uma parafilia”, indica a psicóloga. “Uma coisa é ter crianças abaixo dos dez anos, outra é preferir jovens adolescentes. E rapazes abaixo dos dez ainda é mais grave em termos de reincidência”, reforça.
As duas psicólogas preparam-se agora para entrevistar os 26 homens. A conclusão desta parte da investigação ainda não tem data prevista.
Abusos no anonimato
Os conhecimentos informáticos destes agressores aumentaram nos últimos anos, tendo alguns comportamentos típicos de hackers, bem como o recurso à chamada deepweb ou dark net, onde se garante a anonimização do utilizador, como a Tor, uma rede que além de permitir a navegação anónima possibilita aos utilizadores alojar páginas que não são pesquisáveis nos motores de busca habituais. É uma das mais procuradas.
Inicialmente criada como um projecto do laboratório de pesquisa da Marinha norte-americana destinado a manter protegidas as comunicações do Governo, rapidamente se tornou uma ferramenta procurada por muitos civis. Andrew Lewman, da Tor, recusa que se generalize que a rede, com “2,5 a 3 milhões de utilizadores diários”, seja procurada com objectivos criminosos, explica à Revista 2. “A vasta maioria dos utilizadores nada faz para prejudicar os seus concidadãos. Não toleramos o uso da tecnologia para prejudicar as pessoas, mas acreditamos na nossa missão e que a Tor é absolutamente necessária para proteger a privacidade das pessoas.” Mas Lewman admite que não é possível controlar quem usa a rede. “Os utilizadores da Tor são anónimos, mesmo para nós. Não temos qualquer forma de saber quem está a usar a Tor ou como está a usá-la.”
Além deste tipo de ferramentas, os agressores estão nas redes sociais. Sob nome e idades falsos, gostos fabricados de acordo com as preferências dos menores, muitos indivíduos constroem uma identidade que os torne bem-sucedidos no aliciamento através da Internet para fins sexuais, o chamado grooming.
Mais que a procura e visualização de imagens e vídeos, há os que querem ir mais longe e procuram interacção e em alguns casos presencial, uma realidade, no entanto, com pouca representatividade em Portugal, segundo a PJ. “Nota-se que a Internet, não sendo um passo obrigatório, pode ser um bom início para o estabelecimento de contactos. Quem quer encontrar-se com crianças vai eventualmente procurar nestas novas plataformas de comunicação, incluindo as redes sociais, e criar aí artifícios e possibilidades de encontros com menores”, explica Carlos Cabreiro.
As psicólogas da Judiciária não conseguem responder directamente se existe uma linha ténue a separar o consumo de pornografia infantil do acto presencial. “Há estudos que dizem que mais ou menos 8% passam ao acto e dizem que no grupo online há um grupo elevado de indivíduos com parafilias, mas que a pornografia é suficiente. Outros estudos dizem que isso não é assim tão claro. O nosso problema é não sabermos qual é a percentagem de indivíduos que mente”, dizem.
Predação à distância
“Se até há bem pouco tempo os abusadores precisavam de se deslocar para se manterem em contacto com crianças e adolescentes, hoje, alguns minutos de navegação pelo ciberespaço oferecem informações, dados e fotos que permitem ao pedófilo escolher exactamente o perfil da sua vítima. As informações fornecidas pelos usuários indicam os momentos de maior vulnerabilidade, facilitando a escolha da vítima e da ocasião em que se fará o contacto.” O parágrafo é retirado do livro A Exploração Sexual de Crianças no Ciberespaço (editora Alêtheia, 2014), de Manuel Aires Magriço, procurador da República, e resume a situação em que se encontram vários milhares de menores.
No levantamento que fez para o seu trabalho, apurou que os agressores sexuais de menores online manifestam a “pretensão de ter interesses comuns com a vítima” para se aproximarem. Recorrem a “elogios excessivos” e manipulam “os pensamentos da vítima fazendo-as crer na ‘normalidade’ da relação”, muitas vezes através de mensagens, vídeos e fotografias que pretendem “dessensibilizar a vítima, fazendo crer da adequação de determinados comportamentos de natureza sexual”. Para manter o menor interessado, fazem “promessas extravagantes” e exploram a sua curiosidade sexual. Perante sinais de falta de interesse, o agressor recorre a “ameaças ou chantagem para controlar as vítimas”, como a divulgação de fotografias de carácter íntimo que tenham sido trocadas anteriormente.
Este tipo de comportamento é desenvolvido aproveitando a ignorância dos menores sobre os riscos da troca de informações pessoais e partilha de hábitos diários, nas salas de conversações ou nas redes sociais a que têm acesso através dos seus tablets ou smartphones, no computador de casa ou da escola.
O Centro Internet Segura, da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, tem uma linha Alerta (218 440 126) que recebe denúncias de conteúdos ilegais online. Durante 2014 recebeu mais de 350 sobre conteúdos de pornografia infantil ou de erotismo com crianças. Nuno Moreira, coordenador do centro, explica que as denúncias são anónimas e que “são fundamentalmente homens consumidores de pornografia de adultos que fazem estas denúncias quando encontram pornografia infantil e ficam incomodados”. Também já foram recebidas denúncias sobre conversas ou conteúdos em que está a ser feito o aliciamento de menores. Os casos foram reencaminhados para a PJ.
O fundador do projecto Miúdos Seguros na Net, Tito de Morais, também teve contacto com casos de aliciamento online. “Pontualmente”, o projecto recebe pedidos de ajuda, sobretudo de “jovens adolescentes e pré-adolescentes, aliciados por predadores sexuais, mas também de jovens que partilharam imagens da sua intimidade com outros jovens e vêem essas imagens tornarem-se públicas”. “Com mais regularidade, recebemos denúncias de conteúdos de imagens de abuso sexual de crianças e jovens”, acrescenta.
Cristina Ponte, investigadora da Universidade Nova de Lisboa e coordenadora do projecto EU Kids Online em Portugal, sublinha que, com base nos estudos realizados no âmbito do projecto, “esta é uma situação que ocorre muito menos do que a atenção e os medos que suscita”. Nos questionários do EU Kids Online, os menores manifestaram “principalmente medo do contacto com adultos estranhos”, mas são contactos que acontecem “raramente”. A investigadora refere nesse âmbito que entre as crianças dos sete países incluídos no mais recente estudo da Net Children Go Mobile as portuguesas são as que menos aceitam contactos de desconhecidos. “Apenas 6% aceitam todos os pedidos de amizade ou de contacto que recebem. Cerca de três quartos só aceitam esses pedidos de pessoas que conhecem pessoalmente.”
Caça ao predador
Do lado de quem denuncia, há também os “pedo hunters” ou caçadores de pedófilos, um fenómeno com mais expressão nos Estados Unidos ou Reino Unido, mas que também já tem ramificações em Portugal através de hackers. Esta perseguição acaba geralmente com os perfis dos suspeitos expostos nas redes sociais e entregues às autoridades. Uma pesquisa no Facebook permite encontrar vários grupos dedicados ao “pedo hunting” e no YouTube são frequentes vídeos de predadores sexuais apanhados a minutos de se encontrarem com menores.
Em Portugal, esse activismo existe mas através de grupos ligados ao Anonymous. No Verão de 2013 foi anunciada uma operação na qual se tinham infiltrado em fóruns e chats na deep web para interceptar adultos que procuravam actividades sexuais com menores. As identidades dos predadores foram denunciadas no Facebook e à polícia. Numa troca de mensagens no Messenger com a Revista 2, um dos grupos que desenvolveram a operação, o Sud0h4kers, indica que foram encontrados homens com idades entre os 30 e 60 anos, de vários estratos sociais e habilitações.
A operação não foi a única, segundo o grupo. “Tratando-se de páginas ou utilizadores do Facebook, pedimos colaboração para denunciar as páginas ou esses perfis junto do Facebook ou das autoridades competentes. Por vezes essas iniciativas surtem efeito, também como alerta para alguns pais e utilizadores da Internet, que no geral não têm a mínima noção do que existe por detrás de um teclado de computador”, conta-nos. O grupo lamenta que nem sempre as informações recolhidas sejam consideradas, por “descrédito em relação à ideia de se tratar do Anonymous ou de hacktivistas”.
Na Judiciária, as denúncias feitas por grupos como estes não são descartadas mas recebem críticas quanto à forma de actuação. “Qualquer hacker, qualquer pessoa, que pela consciência e pelo conhecimento que tem, chega a páginas de pornografia infantil deve denunciar logo”, sublinha Carlos Cabreiro. Quanto aos ataques informáticos contra suspeitos, o activismo “não lhes permite cometerem crimes e estarem durante um determinado período a investigar por livre iniciativa e depois passado um ano virem a ‘entregar de bandeja’, como dizem, um determinado indivíduo”.
Grande parte deste activismo faz-se no Facebook. Os perfis denunciados são apagados mas a rede social é acusada de ineficácia no controlo dos utilizadores que aceita. Numa resposta por email à Revista 2, o Facebook assegura que tem “tolerância zero à exploração infantil” e que “nas raras instâncias” em que o comportamento ilegal foi detectado actuou de imediato. “Trabalhamos arduamente para encontrar quem for o responsável e cooperamos com agências de segurança para levá-los perante a justiça.”
Ao Google também são apontadas falhas quanto aos filtros de informações com conteúdos de pornografia infantil quando é feita uma pesquisa no motor de busca. “Infelizmente, todas as empresas de Internet têm de lidar com o abuso sexual infantil”, responde-nos a empresa, acrescentando que trabalha com várias ONG e outras entidades para “combater imagens de tais abusos online, incluindo na pesquisa e no Gmail”. O Google não reporta estes casos às autoridades, mas ao centro nacional de crianças desaparecidas e exploradas dos Estados Unidos, que determina quando deve ser alertada a polícia.
Criminalização de grooming
A criminalização do abuso sexual de menores e da pornografia infantil está prevista na lei portuguesa, mas a punição do crime de grooming continua por configurar. O Código Penal determina penas de prisão que podem chegar aos oito anos para quem praticar acto sexual de relevo com menor de 14 anos ou levar a praticá-lo com outra pessoa. Também a um máximo de oito anos pode ser condenado quem utilizar um “menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos” ou “produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por qualquer meio” de forma profissional ou com intenção lucrativa.
José foi condenado a 19 anos de prisão em cúmulo jurídico pelos crimes de abuso sexual de menores e de pornografia infantil. A pena não é inédita mas é rara e apesar da “mão pesada” da Justiça o actual Governo é criticado por não reforçar as medidas punitivas contra estes crimes. Portugal ainda não transpôs a directiva que o Parlamento Europeu aprovou em Dezembro de 2011 que prevê sanções mais duras (como penas mais longas) e a criminalização de algumas actividades que ainda não são punidas, como o grooming.
A Comissão Europeia sublinhou à Revista 2 que “Portugal tinha a obrigação de implementar a directiva contra o abuso sexual infantil online até Dezembro de 2013”. Bruxelas diz estar atenta ao estado em que se encontra a situação e que se mantém em contacto com as autoridades portuguesas para “garantir que todas as medidas previstas na directiva tomem forma”.
Portugal mantém-se fora dos países subscritores, apesar de a ministra da Justiça ter afirmado que isso iria acontecer “muito rapidamente”. Numa resposta à Revista 2, o gabinete da ministra Paula Teixeira da Cruz diz que a figura de grooming está contemplada na proposta de alteração do Código Penal elaborada pela tutela. O ministério considera que a proposta, ao “introduzir no ordenamento jurídico as soluções propugnadas internacionalmente, representa um avanço extraordinário nesta matéria”.
Do lado de quem investiga, a legislação vai respondendo às dificuldades no terreno. “Em termos de ciberconvenção, não somos os piores. Na protecção dos dados pessoais avançámos com legislação, mesmo quanto à conservação de dados de tráfego também avançámos logo com a lei n.º 32/2008 [regula a conservação e a transmissão de dados gerados ou tratados nos serviços de comunicações electrónicas]”, considerou o coordenador do gabinete de investigação de criminalidade informática da PJ.
Para o procurador Aires Magriço, pode fazer-se “mais com os meios de que dispomos, sobretudo com a colaboração indispensável do sector privado na perspectiva de responsabilidade social das organizações e de auto-regulação”. O responsável do Ministério Público defende a realização de mais operações encobertas online “preventivas e repressivas” e de uma melhor articulação entre as polícias nacionais e estrangeiras. “Investigadores, procuradores e juízes” devem ser formados para tratar deste tipo de casos e ser criadas “bases de dados de imagens, de vítimas, de predadores e de modus operandi, a tratar por uma equipa dedicada de análise e tratamento de informação”. O procurador sugere ainda a criação de um Estatuto da Vítima no Código de Processo Penal que englobe as crianças.
Pelo lado de quem se bate diariamente por uma Internet segura, um dos grandes entraves à resposta contra este tipo de crimes é a “morosidade burocrática que ainda não está adaptada [seja em Portugal, seja na maioria dos países] à rapidez dos processos que ocorrem online”. Nuno Moreira, do Centro Internet Segura, defende uma aposta na sensibilização sobre a importância de guardar evidências para constituir prova de que houve um aliciamento ou assédio. “Há pais que descobrem elementos e esquecem-se de guardar prova, por exemplo fazer um print screen da conversa, gravar as mensagens.”
Dulce Rocha, vice-presidente do Instituto de Apoio à Criança (IAC), tem sido uma das vozes pela transposição da directiva comunitária de 2011 e também do reforço das acções de sensibilização para os perigos online. É defensora de um Plano de Acção Integrado centrado nesta matéria. À semelhança do que se faz quanto à violência doméstica, Dulce Rocha realça a necessidade da formação de profissionais que informem as “crianças sobre os riscos”.
Tal como a maioria dos especialistas e responsáveis ouvidos pela Revista 2, a vice-presidente do IAC insiste no bloqueio de sites com conteúdos de abuso por parte dos operadores de Internet, no “estabelecimento de legislação com sanções, e simultaneamente numa monitorização dos movimentos bancários sobre a aquisição de imagens online que consubstanciem exploração sexual de crianças”.
Minuto 29
“Ao minuto 29:50, alguém toca à campainha, o arguido veste-se e vai à porta e ouve-se a sua voz: ‘Ah, é o (…) … Ele que entre’ [o vídeo acaba com esta expressão].” Antes do minuto 29:50, José tinha forçado três crianças a actos sexuais. Depois do minuto 29:50, quem chega é João, numa noite de Setembro de 2009. No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça o conteúdo deste e de outros vídeos e fotografias são descritos ao pormenor, os dias e horas a que cada criança, em que idade, em que momento e com quem, foi submetida a abusos e depois era forçada a vê-los na televisão da casa de Benfica.
Como fica uma criança depois de um dia, um mês, meses ou anos vítima de abusos sexuais? João nega até hoje o que se passou. Nunca proferiu uma palavra de acusação. O Supremo Tribunal resumiu em 2013 que, antes do sucedido, João era visto “como uma criança dócil, tranquila e carinhosa nos seus afectos”. Após os abusos, “deixou de dormir à noite de modo tranquilo e descansado, acordando inúmeras vezes sobressaltado e inquieto; insiste em dormir com as luzes acesas”. Escreve ainda o Supremo que todas estas circunstâncias lhe causaram “grandes perturbações e sofrimentos psicológicos, afectando o seu processo de crescimento e vivência na vertente afectiva e sexual”.
António e Sofia reconhecem estes traços e não conseguem explicar o comportamento assustadoramente normal que João chega a ter. “No dia-a-dia, é uma criança bem-disposta, gosta de contar anedotas que aprende na escola”, diz o pai. Apenas quando se tenta falar no assunto muda a expressão.
Na escola que João frequentava, onde apenas a directora do estabelecimento de ensino sabia do caso, teve apoio especial. O processo chegou à Comissão Nacional de Protecção das Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR). Pais e João foram ouvidos. “O João parecia bem à comissão, não havia maus tratos”, lembra António. “Tinha medo de perder o meu filho. Eu não parava de chorar”, acrescenta Sofia, quando recorda o dia em que falou aos técnicos da comissão.
A CNPCJR determina que, sendo o “processo difícil e havendo experiências traumáticas a relatar, deverá ser equacionado o acompanhamento psicológico imediato e continuado ao longo do processo” relativo à criança. Segundo António, do encontro com os pais e com João não saiu qualquer indicação sobre a necessidade de acompanhamento psicológico. Mesmo assim, os pais fizeram um pedido nesse sentido ao Hospital Garcia de Orta, em Almada. Mais de dois anos depois, não foram contactados.
Manuel Coutinho, psicólogo e coordenador do projecto SOS Criança, conhece esta realidade. Casos de crianças a pedir ajuda ou a denunciar situações de menores abusados e de grooming já chegaram ao número gratuito 116 111. À Revista 2 conta o caso de uma jovem que se apaixonou por um rapaz nas redes sociais. “Achava que sabia a idade dele, o nome, a escola. No calor da emoção, foi incauta e sem nada dizer a ninguém procurou o dito rapaz. Quando se deparou com a criatura, percebeu que tinha sido enganada, era uma mulher. Só aí se apercebeu que via Net namorava com uma mulher de 40 anos e não com um jovem rapaz da sua idade. Ficou emocionalmente abatida e desapontada com o sucedido. Recebeu apoio psicológico no IAC. Os pais apresentaram queixa-crime.”
Em casos de violência física, a criança deve receber apoio psicológico, mas tudo “depende da idade da criança, do tipo de abuso e da relação que tem com o abusador e ainda se o abuso é intrafamiliar ou não”. Manuel Coutinho diz que “não existe um perfil claro destas vítimas. A criança pode reagir ao abuso de múltiplas formas”. “O abuso sexual é um dos piores maus tratos. Atender uma criança vítima do crime de abuso sexual é uma situação de grande complexidade.” Quanto ao silêncio a que se remetem crianças como João, o psicólogo indica que esse se pode explicar “por medo ou por vergonha”.
Nos casos de um frente-a-frente entre vítima e predador online além de apoio psicológico, deve ser reforçado o alerta sobre os perigos na Internet junto do menor. “Recomenda-se bom senso, educação e muita precaução.” Essa “educação” passa por encaminhar crianças e jovens para acções do Centro Internet Segura, por exemplo. Além do centro, o projecto Miúdos Seguros na Net ou a Comissão Nacional de Protecção de Dados têm iniciativas próprias de sensibilização que levam a escolas ou a populações locais de quase todo o país.
As iniciativas dirigem-se também a pais e encarregados de educação. “O problema que sinto geralmente é que os pais despertam para este problema demasiado tarde, quando os filhos entram na puberdade, pré-adolescência e adolescência, sem terem feito o seu trabalho prévio na infância”, aponta Tito de Morais, defensor da criação de uma “legislação que obrigue as escolas à adopção de políticas, processos e procedimentos no domínio da segurança digital”. É ainda importante a formação de professores e educadores, “incentivando as escolas a fazer acções de sensibilização para pais e encarregados de educação”
Nuno Moreira lamenta, por sua vez, a “falta de interesse por parte dos adultos e dos jovens/crianças sobre estas questões do aliciamento online”. O responsável sublinha que os pais tendem, de uma forma geral, a “não estar envolvidos na vida online dos filhos, nem a documentarem-se sobre os riscos online e as formas de os contornar de modo a poderem exercer uma acção preventiva junto dos filhos”. “A informação existe e está disponível, mas reparamos que só quando surge um caso mediático ou sofrem alguma situação complicada na primeira pessoa é que recorrem aos nossos serviços de forma proactiva.”
A Polícia Judiciária saúda estas iniciativas perante uma realidade que parece fora de controlo. “Estou nisto há 20 anos. Em 1992, dizíamos: ‘Para já, conseguimos controlar tudo.’ Neste momento, é impossível.”
João, António, Sofia e José são nomes fictícios