Médicos do Mundo impugnam patente de fármaco para hepatite C
É a primeira vez que uma organização não governamental recorre na Europa a uma medida deste tipo para melhorar o acesso aos medicamentos.
A Médicos do Mundo diz que tem vindo a alertar, em conjunto com outras organizações, “para os problemas colocados pelo custo dos novos tratamentos para a hepatite C e do Sofosbuvir em particular”, acusando a Gilead de deter um “monopólio” e de estar a comercializar o tratamento a “um preço exorbitante”. A patente foi atribuída pelo Instituto Europeu de Patentes, mas a Rede Internacional da Médicos do Mundo, num comunicado, explica que se o recurso legal de contestação for bem-sucedido poderá “incentivar a concorrência de versões genéricas do Sofosbuvir a um preço de apenas 101 dólares”.
O PÚBLICO procurou obter uma reacção da Gilead, até ao momento sem sucesso. Esta não é a primeira vez que este medicamento é colocado em causa desta forma. Em Janeiro, a Índia rejeitou a patente daquele fármaco, argumentando que não era verdadeiramente inovador para o preço imposto. O país abriu assim a porta a versões genéricas que poderão ser comercializadas a valores que rondam os 1000 euros.
O comunicado da ONG cita como exemplos o preço de 41 mil euros para um tratamento de 12 semanas em França e de 44 mil euros no Reino Unido. Um valor que consideram que tem “impedido que muitas pessoas tenham acesso ao medicamento”. “Apesar da utilização do Sofosbuvir no tratamento da hepatite C representar um enorme avanço terapêutico, a molécula em si, que resulta do trabalho de investigadores públicos e privados, não é suficientemente inovadora para garantir uma patente”, argumenta a ONG, que insiste que existe “um abuso por parte da Gilead ao impor preços que não são sustentáveis aos sistemas de saúde”.
Esta é a primeira vez na Europa que “uma ONG recorre a esta medida para melhorar o acesso dos doentes aos medicamentos”, reforça a Médicos do Mundo. “A oposição a uma patente é um recurso que já foi utilizado pela sociedade civil na Índia e Brasil para conseguir a revogação de uma patente concedida de forma indevida e a disponibilização de versões genéricas”, adianta Olivier Maguet, membro delegado do conselho da ONG para a hepatite C.
“Estamos a defender o acesso universal aos cuidados de saúde: a luta contra a desigualdade na saúde envolve a salvaguarda do sistema de saúde baseado na solidariedade”, acrescenta na mesma nota Jean-François Corty, director de projectos da ONG em França, que sublinha que “mesmo num país ‘rico’ como a França, com um orçamento anual para medicamentos de 27 mil milhões de euros, é difícil suportar este custo e já estamos a assistir a um racionamento arbitrário que exclui os doentes do tratamento”.
A acção da Médicos do Mundo surge apenas uma semana depois de Portugal ter chegado a um acordo com a farmacêutica para garantir o acesso aos fármacos inovadores. O acordo surgiu um ano depois de o Sofosbuvir ter sido aprovado na Europa e na mesma semana em que o PÚBLICO noticiou que uma mulher de 51 anos morreu depois de mais de dez meses a aguardar autorização para fazer o tratamento. Enquanto decorriam as negociações, apenas os doentes em risco de vida estariam a receber o tratamento, mas as associações de doentes já tinham denunciado que no terreno a realidade seria outra. A semana do acordo ficou também marcada por um apelo no Parlamento, em que durante uma comissão de saúde um doente com hepatite interrompeu os trabalhos e disse ao ministro: “Não me deixe morrer”.
O preço do protocolo entre o Ministério da Saúde, a Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed) e o laboratório não foi divulgado, com o ministro da Saúde a justificar que é “confidencial”. Contudo, em Espanha o preço ficou nos cerca de 25 mil euros e Portugal conseguiu um valor abaixo, até porque se comprometeu a tratar praticamente todos os 13 mil doentes com hepatite C registados nos hospitais. Paulo Macedo falou mesmo no “melhor acordo da Europa”. O protocolo prevê que os doentes sejam tratados com Sofosbuvir mas também com um outro medicamento da Gilead, aprovado depois, que contém Sofosbuvir e Ledipasvir.
Os dados da Organização Mundial de Saúde apontam para que existam 130 a 150 milhões de doentes crónicos de hepatite C, com um total de 7,3 a 8,8 milhões de infectados só na Europa. A doença, causada por um vírus que inflama o fígado e que pode levar a casos de cirrose, cancro e falência hepática, em cerca de 20% dos casos cura-se espontaneamente e pode permanecer assintomática durante mais de uma década. O contacto com fluidos sanguíneos é a principal forma de transmissão da doença.