Doente com hepatite C pede ao ministro da Saúde: "Não me deixe morrer"

Morte de doente com hepatite C e protesto de um doente no Parlamento levam ministro a comprometer-se "pessoalmente” a elaborar um plano para responder a estes casos. PS quer ouvir presidente do Infarmed.

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O protesto na comissão de Saúde Daniel Rocha

A presença de Paulo Macedo nesta quarta-feira no Parlamento foi agendada potestativamente pelo PCP para discutir os problemas nas urgências dos hospitais públicos, na sequência de inquéritos abertos à morte de sete doentes que supostamente tiveram tempos de espera acima do recomendado para serem atendidos. No entanto, logo na primeira intervenção da comunista Paula Santos ficou claro que a hepatite C marcaria o dia e abafaria o caos nos hospitais, com a parlamentar a questionar Paulo Macedo sobre o caso de uma doente com 51 anos que morreu na sexta-feira depois de esperar quase um ano pelo Sofosbuvir, o polémico fármaco do laboratório norte-americano Gilead Sciences.

O caso de Maria Manuela Ferreira, avançado pelo PÚBLICO, marcou as perguntas dos deputados, mas não só. A sessão decorria há menos de 40 minutos quando a entrada de três pessoas na sala aumentou as movimentações. José Carlos Saldanha, da Plataforma Hepatite C, pediu para assistir à comissão de saúde como visitante. Fez-se acompanhar por Ivo Miguel, que está apenas solidário, pois tem a mãe internada com hepatite C, mas com o tratamento inovador aprovado, e por David Gomes, filho da mulher que veio a morrer na sexta-feira no Hospital de Santa Maria, apesar de ser acompanhada no Hospital de Egas Moniz. Em 2014 esteve internada sete vezes. Não resistiu ao último internamento.

Aos jornalistas, após a sessão, Paulo Macedo confirmou que o Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental abriu um inquérito interno ao caso, mas não adiantou se a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde também iria desencadear alguma acção. Lá fora, frente à Assembleia da República, mais de 50 pessoas protestavam contra a falta de acesso a tratamentos.

Os três visitantes da plataforma abriram os casacos na sala e revelaram camisolas vermelhas e brancas com um apelo claro: “Medicamento para todos”. Um apelo que José Carlos Saldanha não resistiu a fazer directamente e de pé. “Escrevi-lhe uma carta e o senhor não me respondeu. Não há direito, acabem com isto de uma vez por todas”, disse, justificando que tem uma filha de 12 anos a quem não sabe o que dizer e que já propôs à tutela pagar metade do tratamento do seu bolso – sem resposta. Ao PÚBLICO adiantou que o pedido que o Hospital Curry Cabral fez para o medicamento só terá chegado à Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed) em Dezembro. “O que se está a fazer é um genocídio a uma doença silenciosa. Estou na fila para morrer como a mãe do David”, resumiu.

A concorrida sessão, como quase todas as que contam com a presença de Paulo Macedo, praticamente esgotou a capacidade da sala, tanto para jornalistas como para deputados, após a entrada dos três visitantes e, sobretudo, com a interpelação de José Carlos Saldanha. Os assessores parlamentares, ministeriais e deputados multiplicaram-se em trocas de informações, conversas paralelas, entrada e saída de papéis. No final David e Ivo conseguiram ser recebidos por Paulo Macedo, numa sessão em que dizem que perceberam que têm de pressionar também a Gilead.

Na comissão, as perguntas das urgências foram intercaladas com as da hepatite. Sobre as urgências, a oposição foi repetindo que os problemas resultam do corte e desmantelamento que o executivo de Passos Coelho tem levado a Saúde a fazer. A equipa de Paulo Macedo contestou com dados de mais meios técnicos e humanos e com hospitais mais sustentáveis, lembrando o ministro que houve mais planeamento e que o problema foi terem surgido casos mais graves, acentuados pela conjugação do frio e da gripe.

As trocas de palavras entre bancadas foram subindo de tom, motivando inclusive intervenções para pedido da defesa da honra. A presidente da comissão, a socialista Maria Antónia Almeida Santos, viu-se obrigada a pedir calma e silêncio por várias vezes e a que a comunicação social não fizesse entrevistas na sala num dia em que “a honra está com uma sensibilidade acrescida”. A introdução do tema da natalidade pelo PSD mereceu críticas da oposição, que o considerou desadequado. Os sociais-democratas contrapuseram que a hepatite C também não estava na agenda.

O momento mais tenso foi protagonizado após as palavras do doente, que levaram o deputado social-democrata Miguel Santos a apelar a que os dois outros elementos da plataforma saíssem. “São pessoas que cá estão e que querem criar um incidente”, argumentou, acusando o doente e familiares de “tirarem selfies como se fosse um acto lúdico e filmam o que o país pode ver em directo”. “Julgo que é bastante lógico que devia solicitar que as pessoas se retirassem e que os trabalhos decorressem com toda a normalidade”, disse. Maria Antónia Almeida Santos reconheceu o “excesso de um cidadão”, mas com a oposição a defender a manutenção dos assistentes “na casa da democracia” a opção foi por continuar os trabalhos. David Gomes não gostou das palavras de Miguel Santos e preparou uma carta para entregar à presidente da Assembleia da República, como queixa sobre o deputado por se sentir “ofendido”.

Os nomes de José Carlos e de Maria Manuela não foram referidos directamente pelos deputados. Os casos foram extrapolados pela oposição para confrontar a tutela com a ausência de um acordo com a Gilead, quando o medicamento já está disponível na Europa há mais de um ano. Em teoria está a ser dado aos casos mais graves – Macedo referiu 600 tratamentos dados ou aprovados – mas as associações de doentes têm alertado para que, no terreno, a realidade seja outra. Em resposta aos partidos, o ministro repetiu que a informação que tem do Infarmed é de que o acordo esteja por dias. Entretanto o PS requereu a presença, com carácter de urgência, do presidente do Infarmed no Parlamento.

Macedo assumiu, ainda, que o Governo tem “claramente o interesse de introduzir o medicamento desta companhia farmacêutica”, mas destacou os “preços monopolistas”. O ministro deu exemplo de outros fármacos que pela mesma eficácia teriam de ser pagos a valores elevados. “A penicilina teria de ser paga a peso de ouro, ou o ar que respiramos”, ironizou, numa declaração que mereceu protestos dos doentes, que repetiram “nós estamos a morrer”. “As pressões dão mais poder à indústria farmacêutica”, alertou Macedo. Só mais tarde, já na última intervenção e depois dos incidentes, acabou por reconhecer que podem existir esperas desnecessárias: “O circuito precisa de melhorar e eu comprometo-me pessoalmente a ver o que pode ser encurtado”.

 

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